Inútil

Foto: Jaula De Ardilla/Flickr.com

O médico recolheu o estetoscópio e guardou as mãos nos bolsos do avental branco. O peso delas agora deformava o nome de doutor bordado, com capricho, no bolso esquerdo. Encarou a moça, debruçada na cama sobre os pés do pai, sedenta por uma palavra sua.

– E então, doutor?

Ele correu o olhar pelo lençol amarfanhado e sentenciou:

– Agora é aguardar. Tudo o que podíamos fazer, foi feito. Vamos esperar o organismo reagir. Não é, seu Osmar?

O pai remexeu-se na cama com determinação. Cruzou os braços fortes e cobrou da filha o pedido que fizera dias atrás, assim que dera entrada no hospital.

– Conseguiu achar a Dona Mercedes?

A filha disse que havia conseguido localizar um neto dela, ele prometeu passar o telefone. Mas não garantiu que ela se lembraria dele, afinal já estava tão velhinha. Aposentara-se no magistério há quase trinta anos. E, segundo o neto, andava lelé da cuca, nem queria mais sair de casa. O pai insistiu:

– Eu preciso falar com ela, está entendendo? Temos uma coisa muito antiga para acertar.

A filha sentiu que cabia uma explicação ao médico.

– Meu pai foi aluno dessa Dona Mercedes em… que ano mesmo, pai?

– Mil novecentos e cinquenta e cinco. Eu tinha treze anos.

– Isso, cinquenta e cinco. Agora meu pai cismou que está nas últimas, e não quer partir sem antes ter uma conversa com essa Dona Mercedes. Mas ninguém sabe o que é. E estou tendo o maior trabalhão para falar com essa mulher. O neto ficou meio ressabiado, mas prometeu ajudar. Olhe só, doutor, que novela!

O médico riu.

– Mas o que o senhor quer com sua antiga professora, seu Osmar? Ela reprovou o senhor? – brincou.

– Reprovar, não reprovou – o pai respondeu, enquanto levava a mão à cabeça. Mas um dia eu fiz um questionamento sobre a lição, ela respondeu, eu não aceitei… (fez uma pausa para respirar) e agora quero provar que eu estava certo.

O médico tirou as mãos do bolso, agora já se lia novamente seu nome de doutor. Deu uns tapinhas nos ombros de seu paciente e despediu-se. Amanhã eu venho ver o senhor.

Três dias depois, o pai continuava no hospital. Viravam-lhe do avesso. A filha veio para a visita da tarde. Tratou logo de contar-lhe a novidade: falara com Dona Mercedes. Que, diferente do que o neto lhe dissera, não lhe pareceu lelé coisa nenhuma. Até lembrou da turma de seu Osmar no velho colégio, que nem existia mais. Aqueles moleques gostavam de pregar peça na gente. Uma vez, mexeram no calendário da sala de aula e me fizeram acreditar que não era o dia da prova – contou, rindo, ao telefone. Ainda morava nas redondezas, prometeu ir ver seu antigo aluno.

Foi num sábado de manhã. O pai acordara meio esquisito, a filha achou melhor adiar o reencontro. Poderia ser emoção demais. Mas o pai fez questão e, cinquenta e cinco anos depois, professora e aluno viram-se novamente. Ele não vestia mais o uniforme azul-marinho do ginásio. Em seu lugar, uma camisola cinzenta. Ela não tinha mais o penteado das moças das revistas. Aproximou-se da cama e, repousando suas mãos, ainda firmes, sobre as dele, disse:

– Pois bem, Osmar. Estou aqui.

Apesar da dificuldade que começava a sentir ao construir as frases, ele sorriu:

– A senhora lembra que eu odiava matemática?

– Odiava nada… Você tinha era preguiça de raciocinar! Quando queria, tirava boas notas.

– A senhora se lembra que um dia eu lhe perguntei onde, na vida, eu usaria a equação de segundo grau?

– Disso eu não me recordo, não. Mas devo ter lhe dito que você a usaria, sim. E muitas vezes.

Os olhos do pai ficaram rasos d’água. Suas mãos, trêmulas, grudaram nas mãos da professora. A voz começou a embargar. A filha apertou a campainha ao lado da cama e saiu do quarto, Enfermeira!

– Pois a senhora quis me convencer disso… E eu tive que decorar a maldita. Sabe por que pedi tanto à minha filha para encontrar a senhora? Porque eu precisava lhe dizer uma coisa. Preste atenção, Dona Mercedes: eu nunca usei a equação de segundo grau na minha vida. Para nada!

O quarteto de mãos permanecia colado. Embora algo ali já começasse a se desprender. Duas enfermeiras entraram aflitas no quarto, a filha atrás, celular a postos. Uma inspecionou o soro, a outra conferiu o coração. A que cuidava do soro foi chamar o médico. Um enfermeiro apareceu, ao invés. A filha fechou o celular, plec, e também a porta. Todos ali, exceto professora e aluno, estavam desorientados. Pareciam formigas, quando alguém destrói o formigueiro.

Dona Mercedes arrumou-lhe o travesseiro, preparando-se para a confissão:

– Nem eu, Osmar. Nem eu.

Olhou o relógio: dez e vinte. Não poderia esquecer, o médico iria perguntar.

15 comentários em “Inútil

  1. Oi, Silmara!
    Cá estou novamente. Li e gostei. Linda a história. Eu também não sei pra que servem certas coisas que aprendemos. Algumas delas deveriam ser até desaprendidas. Não é mesmo?
    Um beijo

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  2. Olá, Silmara.

    Fazia um bom tempo que eu não visitava seu blog. Desde o ano passado, eu acho. Mas agora “tirei o atraso”. Li vários posts, sempre com um gostinho de “quero mais”. Seus textos são ótimos e realmente prendem nossa atenção.

    Além de ter ficado um bom tempo sem pegar “o fio da meada” aqui, eu também fiquei um tempãozão sem atualizar o Olhar Mutante. Mas agora estou voltando aos poucos, dei uma mudada no visual do blog e, até o momento, estou conseguindo postar com certa regularidade.

    Bom, escrevi para dar esses dois recados: voltei (com prazer) a ler o que você escreve, e também voltei à ativa no Olhar Mutante.

    Um grande abraço,
    Brunno – http://olharmutante.wordpress.com

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  3. Pois é, e fico aqui matutando…Será que a gente tem que esperar até a hora da morte para se livrar dos pesos inúteis? Acho que não, podemos fazer isso a cada dia, tornando nossas vidas mais simples, vendo os problemas como desafios, tendo certeza de que somos providos dos recursos necessários para superá-los…
    Levar a vida leve, sempre com um sorriso mesmo quando as lágrimas insistam em cair dos olhos…
    Uma semana útil e iluminada a todos!

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  4. Depois que conheci você, Sil, definitivamente comecei a acreditar em coincidência, sincronicidade ou seja lá o que for.
    Segunda-feira, quando fui ver mr Pereira, ganhei dois livros. Ambos de contos. Num deles, a primeira coisa que li, quando abri, foi:
    “No oitavo dia de criação
    Deus estava cansadão
    Assim criou-se a matemática
    também a análise sintática
    pra encher o saco da gente”
    Na hora, lembrei da agenda do colégio que eu fazia minhas rimas no primeiro ano:
    “Se função fosse útil
    Lendo a apostila eu estaria
    Como é inútil
    Faço essa linda poesia”

    Que vontade de fazer a mesma coisa que Osmar fez. Do fundo da alma.

    Beijo,
    Camila
    ilimitada-mente.blogspot.com

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  5. Oi Sil,

    Nao vou esperar ate o final dos meus dias! Vou me imaginar nesse momento tete-a-tete com uma professora minha:

    -Professora Ferize da 7a, Colegio Luiza de Marillac -1994: Gostaria de dizer que eu, assim como o Sr. Osmar, nunca precisei das equacoes e formulas geometricas pra nada. No primeiro semestre, minha media foi 4.5 e a Sra disse que eu nao iria passar de ano. Estudei muito e de alguma forma passei com a media 8.0. Mas infelizmente, ja esqueci tudo. Se tivesse que fazer a prova hoje, a Sra. iria se decepcionar.

    Mas o que marcou, nao foi a sua insistencia em exigir que minha nota aumentasse, foi quando a Sra. disse que alunos como eu, que sentavam na ultima carteira da sala, nao queriam mostrar o seu potencial na vida.
    Desde entao, eu parei de sentar la atras. Sempre sento na frente e presto atencao, mas tento nao atrapalhar a visao dos que estao atras de mim.
    Um grande abraco e obrigada!

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  6. Sil querida,
    legal demais da conta….
    Da vontade de saber o que mais aconteceu.
    Menina, sua escrita prende a gente de uma forma muita mágica.

    E então, gostou das fotos da Lê??

    Beijos

    Ana

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  7. … sem palavras…
    lindo Silmara, tocante…
    Quem nunca perguntou, onde vou usar isso? E mesmo assim temos que aprender… E um dia temos que aprender a lidar com a falta… e isso não se aprende na escola.
    beijinho
    Josi

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