O sapato, a rosa e a estrela

Foto: Travlinman/Flickr.com

Fim das férias escolares. Como se faz após a passagem de um furacão, trato de colocar, aos poucos, a vida em ordem. Começo pela saúde. A física, porque a mental foi para o brejo.

Toco a campainha. Pela porta de vidro, vejo que a recepcionista não está em seu posto. Espero. Um pássaro, uma moto e um bêbado passam na rua. Cada qual com sua melodia. E nada da recepcionista aparecer. Uma moça de cabelos longos, que aguarda lá dentro na sala de espera, me vê. E, talvez com pena de mim, derretendo sob implacáveis trinta e dois graus, abre a porta. Agradeço. Não sem antes pensar: eu não seria capaz da mesma cortesia. E o medo de abrir para uma bandida travestida de paciente? Invejo sua atitude e prometo ser menos neurótica daqui para frente. Ou, simplesmente, mais confiante.

A recepcionista retorna. Pede que eu ponha o dedo indicador na leitora biométrica. Coloco o polegar. Não disse? O brejo. Aboleto-me no sofazinho e avalio a leitura disponível. A coisa mais divertida das salas de espera são as revistas. Folheio um troço qualquer. O mais interessante nelas é a absoluta desimportância de seus títulos, seu descompromisso com qualquer esforço mental. E meu radar capta o quê? Um par de sapatos. Sempre eles. Clássicos, charmosos, num delicado padrão de cores de areia e rosa. Penso em flores no deserto. Déjà vu: eu já vi aqueles sapatos antes. Só não sei quando, nem onde. Enquanto matuto, divido meu olhar entre a revista e a dona deles. Bingo: é a moça que abriu a porta. Mais que isso: a mesma que eu vi dias atrás, na clínica a poucos quarteirões dali, onde fiz os exames que agora trago para a médica ver.

Finjo que leio, mas não tiro os olhos dela. Essa minha vontade de falar com Deus e o mundo. (Quem mais nota isso é Deus.) De contar coisas, fazer perguntas. Na maioria das vezes, me controlo. Noutras, não.

– Você estava naquela clínica aqui perto, outro dia?

O sorriso da moça se abre, tal uma rosa, da cor rosa dos seus sapatos:

– Eu ia perguntar a mesma coisa! Reconheci você pela estrela – disse, apontando para a tatuada em minha perna.

– Já que é assim, também confesso: reconheci você pelos sapatos. São tão bonitos!

Desenho o argumento do curta-metragem: duas mulheres fazem o mesmo exame de rotina, na mesma clínica, no mesmo dia. As duas são pacientes da mesma médica. As duas têm consulta na mesma terça-feira. Uma às cinco, outra às cinco e meia. As duas reconhecem, uma na outra e na mesma hora, um sinal, uma particularidade. Que permanecem guardados na memória de ambas, junto a tudo o mais que habita a vida de cada uma, sem que nenhuma se dê conta disso. A uma cabe a gentileza do dia. À outra, a primeira palavra. Para que um fio invisível se estabeleça entre elas, ligando outros fatos que sequer serão sabidos.

A casualidade e sua vizinha, a coincidência, por morarem tão perto, também vivem se esbarrando. Tem até quem as confunda, são mesmo parecidas. Mas é só prestar atenção. Uma se levanta cedo e está sempre cuidando das rosas do jardim. A outra gosta de ficar acordada até tarde na varanda, descalça, quando o céu é estrelado como esse de hoje.

12 comentários em “O sapato, a rosa e a estrela

  1. Preciso ser redundante: que delícia de coincidências, que delícia de texto!
    ( Tô vendo que você gosta de sapatos, como eu. Olha, que coincidência!)

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  2. Lindo, lindo, como sempre. Belo Horizonte é que tem muito dessas coisas, de nos fazer cruzar com as mesmas pessoas zilhões de vezes em lugares totalmente diferentes. Mas ainda me falta a coragem de dizer um “oi”…
    Beijo grande!

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  3. Ai Sil………….
    quanta beleza e delicadeza. Menina, vc não existe.
    Enche meus dias com sua poesia, suas flores, sempre elas, que me aproximaram de ti.
    Fico super feliz com o colorido que vc dá aos meus dias.
    E vou falando com a Letícia da tia Sil, enquanto ela começa a descobrir a bonequinha que vc lhe deu.
    Beijos mil.

    Ana

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  4. Bom, eu também passei pelo furação das férias, com três aqui em casa, mais marido e cachorro, o que dá cinco… Me disseram que cinco é um bom número, mas sei lá, não confio muito na matemática, mesmo quando ela vem de terras distantes…
    Não acredito em coincidências. Nem a menor delas…Tudo no universo está em ordem, o problema é que nós não estamos, rsrsrs! Uma pessoa desconhecida até aquele preciso momento pode sim, iluminar nosso dia, como aconteceu com vc, e os motivos podem ser coisas tão prosaicas como sapatos, ou tão fundamentais como a gentileza.
    Importa estar de coração e mentes abertos, para que a ordem do universo nos encontre, e para que a gente participe dele acrescentando e fruindo do prazer e da beleza de estarmos aqui, agora.
    Uma semana iluminada!!

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  5. Oi Silmara!
    As coincidências sempre nos pegam numa curva da vida… coleciono algumas… mas deixa eu te contar um diálogo do Théo…
    no carro, indo buscar a Bea na escola…
    – meu amor, tudo bem aí atrás? pergunto.
    – tudo bem sim mamãe, e aí na frente, tudo bem? ele responde e retruca.
    – tudo, tudo bem aqui também.
    passado uns minutos…
    – mamãe, que coisa boa é a coincidência, né?

    Sil, quase chorei, percebendo que meu menino com 3 anos, estava feliz e mesmo sem saber o significado dessa palavrinha tão estranha a usou no seu verdadeiro significado. O bem estar de um está ligado ao bem estar do outro. … mas ainda há pessoas que ficam mau se o outro está bem… uma pena. Que bom se só nos bastasse a felicidade dos que estão a nossa volta… pra nos deixar felizes.
    Bem, eu estou feliz, e vc, está feliz também?
    boas coincidências pra sua semana!
    beijinho
    Josi

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