Sobre tempos e feitiços

Ilustração: Eurritimia/Flickr.com

Faltavam dois minutos. Acelerei, passei o sinal vermelho, ultrapassei um ônibus, virei à direita e entrei no estacionamento. Apertei o botão, retirei o cartão, a cancela se abriu, engatei a primeira. Voei até a locadora e… fechada. Como, se ainda faltava um minuto?

No meu relógio ainda não eram onze horas. Mas na locadora já devia ser. Lojas têm um fuso diferente – estão sempre adiantadas. Já perdi a conta de quantas vezes uma porta se fechou diante do meu nariz, enquanto do outro lado alguém com um sorrisinho misturando pena e ironia apontou didaticamente para uma placa com os horários de funcionamento, ou então fez um gesto com as mãos mostrando que já encerraram por aquele dia – numa mímica cruel – e em seguida desviou o olhar.

De volta ao carro, olhei para os DVDs no banco do passageiro e calculei a multa. Uma ninharia, perto do desaforo de retornar com eles embaixo do braço. Por conta de um minuto. Ou nem isso. Já na saída do estacionamento, lembrei-me que a locadora poderia ter Quick Drop. A gente nem precisa entrar, devolve tudo lá de fora mesmo, através de uma espécie de portinhola. O DVD escorrega por uma canaleta e pronto. Está devolvido. Antigamente o método era um pouco constrangedor, dependendo das instalações: todos na locadora – funcionários e clientes – eram ‘avisados’ de que alguém devolvera seus filmes. Uma barulheira.

Esperançosa, dei a volta no quarteirão e entrei novamente no estacionamento. Apertei o botão, retirei o cartão, a cancela se abriu, engatei a primeira. Tudo precisamente idêntico à cena de, quanto?, uns dois minutos atrás. Mesmos movimentos dos meus braços, mãos, cabeça, olhos. Mesmo carro, mesmo som do mesmo motor, mesmo abre-fecha da cancela. Era uma cena nova, de fato. Incrivelmente velha, conhecida e usada, porém. Um rapaz, recostado a um pilar ao lado da cancela, certamente desde antes da minha primeira entrada e, tendo percebido a repetição, assistiu à segunda com certo assombro inicial. A baforada de seu cigarro foi interrompida, sua boca permaneceu no movimento de quem pronuncia a letra “o” e seu olhar, incrédulo, me seguiu. Deve, por um instante, ter pensado com sua bituca se estava a ver coisas. Ri.

Quem assistiu “O feitiço do tempo” – filme antigo e instigante – já deve ter posto a imaginação para trabalhar e deu continuidade à história. Verdade seja dita: é sempre um divertido exercício, tremendamente inspirador, esse de pensar na repetição constante de um dia e de todos os fatos que se desenrolam nele. Sempre do mesmo jeito. À mesma hora. Nos mesmos lugares. Com as mesmas pessoas. Sob os mesmos propósitos, conscientes ou não. O que se tira disso é impressionante, ainda que somente sob um aspecto: misture-se o azul e o amarelo e sempre se terá o verde. Não adianta querer que dê roxo. Adicione-se água à terra e sempre se terá o barro. Assim é com as nossas ideias. Relacionamentos. Planos. Roupas. Comidas. Casas. Gostos. Passeios. Atitudes. Sonhos. Opiniões. Trabalho. Dinheiro. Saúde. Fé. Para tê-los diferentes dos nossos velhos conhecidos, não tem jeito: as fontes, as referências, precisam ser outras.

Meu dia (ou meu filme) escapou do feitiço do tempo e mudei o final da história. Afinal, a locadora não tinha Quick Drop.

6 comentários em “Sobre tempos e feitiços

  1. Acho que já vi esse filme faz um tempão… Não me lembro mais dos detalhes direito.
    Às vezes acontece comigo de estar fazendo alguma coisa e eu pensar: acho que já fiz isso dessa maneira!

    Quando eu fiz essa ilustração, eu tava justamente com uns pensamentos de o tempo andar pra trás pra quem sabe depois andar pra frente novamente. Tava pensando na fluidez do tempo…

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  2. Poxa! Fiquei sem o contexto do filme. Mas pensei na minha rotina. Nas pessoas que encontro todo dia enquanto vou para o trabalho, mas que não estão lá se atraso cinco minutos…
    E “cinco minutos de atraso”, em alguns casos, renovam tantas ideias e opiniões e tudo…

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  3. Já imaginou Sil, podermos fazer igual ao personagem do filme e ter a chance de corrigir nossos erros e aprender a viver melhor com as pessoas? Descobrir o verdadeiro significado da vida e das pessoas que nos cercam, poder se arrepender de uma grosseria e no instante seguinte voltar atrás e corrigir o erro? Seria maravilhoso e ao mesmo tempo perigoso concorda?
    Queria poder fazer isso ao menos uma vez na vida…

    Acho a idéia do quick drop fantástica. Aqui em Recife não temos esse serviço também, uma pena.

    Beijos na alma!
    Layla Barlavento
    culpadowalter.blogspot.com

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  4. Genial a ideia do Quick Drop, Sil. Pena que eu não vi esse filme para sua crônica ficar genial e ter o devido sentido. Desse final de semana não passa.

    Beijo!

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  5. Engraçado essa coisa do tempo…Eu tb amei o filme, e penso nele sempre, se eu faria a mesma coisa, se teria a paciência suficiente, se daria a volta por cima e aproveitaria aquele momento ao máximo…Mas não é disso que a vida se trata? Aproveitar ao máximo não só no sentido do fruir, do desfrutar os prazeres, mas aproveitar e aprender, a conviver, a ser útil, a tocar um instrumento, a conquistar um verdadeiro amor…As mudanças nunca são aparentes, mas são profundas. Marcas que nós teremos como cicatrizes de guerra, histórias para contar aos netos. Uma aventura.

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