Bizarre Love Triangle

Ilustração: Fave/Flickr.com

Ele vai perguntar o que vou querer hoje, como se já não soubesse. Nesta porcaria de restaurante que ele insiste em vir todo domingo só o risoto de shitake presta. Queria ter ficado em casa. Tão cansada. Na verdade, preferia ter saído sozinha. Está difícil até olhar para ele. Aonde é que foi parar a nossa alegria dos primeiros jantares, hein? Virou alergia. Alegria e alergia têm as mesmas letras. A mesma base. Mas nesse caso a ordem dos fatores altera o produto. Uma representa o que atrai; a outra, o que repele. O Henrique precisa cortar esse cabelo, olha só como está comprido. Fica com ares de menina, não gosto disso. Eu não falo nada, não dá para conversar com ele, nessa idade é impossível dialogar. Mas que fica estranho, fica. Que horas devem ser? Tão tarde para jantar. Como eu odeio domingo. Só de pensar no que vou ter que enfrentar amanhã, outra urticária. Queria poder jogar tudo para o alto. Para o alto não, senão cai tudo em cima de mim. Para trás, bem longe, seria melhor. Mas se eu pensar em parar de trabalhar, a casa cai. Quero ver como vou fazer no ano que vem. Marquei as férias, ele insistiu tanto. Mas não estou com a menor vontade de viajar. Nem de jantar. Nem de falar. Nem de nada.

Ela e esse mau humor. Anda uma pilha de nervos. Deve ser a auditoria. Eles pegam pesado mesmo, sei como é esse pessoal. Já disse a ela para sair do banco, entra por um ouvido e sai pelo outro. Ela reclama mas, no fundo, não vive sem aquilo. Tantos anos, já criou raízes. Falta pouco para ela se aposentar, se acomodou. Ano que vem as coisas melhoram. Vamos viajar, só nós dois. Ela pede isso há um tempão. Henrique fica na casa dos meus pais, são só duas semanas. Quem sabe eles não o convencem a cortar o cabelo. Ainda não vi o Luís por aí. Deve ser a sua folga hoje. Vida dura, a de garçom. A minha também, não anda nada fácil. Por mim, teria ficado em casa, estou um caco. Mas sei que para ela é importante dar uma saidinha no fim de semana. Ela gosta daqui, é doida pelo risoto de cogumelo.

Que saco, impossível passar dessa fase. A dica do site está furada, não dá para passar pelo labirinto, nem matando os avatares. Terça tem prova, tinha esquecido. Depois eu pego a matéria com a Ana Banana. Se ela deixar, pego mais alguma coisa também. Ah, não tinha visto essa saída aqui. Agora vai. Não sei por que a gente tem que sair pra jantar todo domingo. Já almocei com eles. Conversei, contei da escola, respondi tudo o que eles queriam saber. Não está bom? Nunca consigo assistir Drake & Josh inteiro. Eu queria ter ido pra casa do Darth Vader, ia todo mundo lá ver o Wii novo. O que eu vou comer hoje? Já conheço esse cardápio inteiro. Eles, eu sei: ela vai pedir aquele arroz esquisito, ele vai de estrogonofe. Gente velha pede sempre a mesma coisa.

18 comentários em “Bizarre Love Triangle

  1. Esses dias eu tava pensando no fluxo de consciência. Escrevi no papel alguma coisa assim “estrutura complexa, ideia simples”. Nabokov disse que grandes ideias são bobagens, a essência está na estrutura e estilo. Então me veio a imagem desse texto na cabeça…
    Aí vim pra cá…
    Não escrevi mais nada. Você fez tudo! Hahaha

    Incrível, Sil.

    Beijo!
    Camila

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  2. E pensar que isso acontece todos os dias, bem perto da gente…
    É tudo o que eu não quero pra um relacionamento: falta de diálogo, de compreensão e de sinceridade.

    beijo, Sil!
    Já falei da saudade?

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  3. olá !

    gostei imenso deste seu texto. acho muito sensível e engraçado ao mesmo tempo ver os três pontos de vista:)
    gostei mesmo.

    reparei que o meu blog consta na listinha do lado esquerdo do seu blog e quis retribuir. agora tb está no meu 🙂

    beijinhos transatlânticos.

    iara

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  4. hahahahaha!

    A-do-rei!

    Tá, concordo com o pessoal que falou antes de mim que muitas vezes falta comunicação, é o mal do século e não sei o que. Mas, vamos combinar: sair todo domingo à noite pra comer a mesma coisa, mesmo sem estar com vontade? E ainda obrigar o pobre do Henrique a ir junto? Sendo que o Wii é tão mais divertido…

    [Vai ver, o mal do século não é a falta de comunicação, é fazer as coisas sem tesão]

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  5. Isso é o que muitas vezes acontece quando esquecemos de olhar para os lados. Enxergar quem amamos.
    Qualquer dia desses estarão os três reclamando porque nunca mais foram naquele restaurante, entre outras coisas perdidas na loucura de querer ter tudo e esquecer de que o tudo já está com você.

    Beijos na alma!
    Layla Barlavento
    culpadowalter.blogspot.com

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  6. Por que será que as pessoas nunca estão satisfeitas?? Este é o mal do século. Falta o tato, o jeito certo de se colocar o que se quer (e quem realmente sabe o que quer??) sem ferir, sem magoar.
    Eu proponho e pratico: peito aberto, mas com amor. Se errar, volto, corrijo e sigo. Não é melhor?
    Uma semana iluminada!

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  7. Adorei!
    Problemas de comunicação infelizmente são comuns nos relacionamentos. Não seria bem mais fácil se as pessoas conversassem mais?
    Eu sei… é complicado!
    Adoro seus textos e este me chamou ainda mais a atenção pois eu amo de paixão a música que dá titulo ao post (Bizarre Love Triangle – New Order).
    Voce sempre acerta!

    Beijos

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  8. Olá querida!!
    Se falássemos o que pensamos e esperamos das pessoas amadas, tudo seria muito mais fácil… e feliz.
    bjk

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  9. Silmara,

    Tem momentos que o casamento, a vida , tudo… fica chato mas o importante é superar momentos de angustia e depressão e o grande desafio da vida e colocar o Amor na frente de tudo na minha Vida tem dado certo ,mas não é fácil.
    beijos
    Adriana

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  10. Silmara,

    Passei por acaso, como faço todos os dias, só pra ver se tinha coisa nova e lamentar a falta detempo pra ler. Esse, não consegui deixar de ir até o fim. Maravilhoso! Não importa o casal, nem quantos anos de casados, sempre passamos por essas situações. O ruim é quando vira regra e não exceção.

    Graças a Deus, no meu casamento ainda é exceção. E meu filho ainda prefere ficar conosco do que ir p casa de um tal Darth Vader. Mas tb sei que isso é passageiro…sofro!

    bjs

    Ivana (tete de BSB)

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  11. … as vezes falamos mais sozinhos do que com os outros… ou falamos com nossos outros “eu”, acertamos os ponteiros num mundinho de faz de conta e achamos que o outro, entendeu nossas explicações detalhadas e nossas desculpas sinceras… pena que ele nem ouviu, estava falando consigo mesmo … quem sabe se explicando ou se desculpando…

    Beijinho Sil!

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  12. Sil querida,

    dá um jeito de publicar logo um livro. Seus contos me deixam com um gosto de quero saber o resto.
    Beijocas
    Ana

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