Língua

Ilustração: Maria G./Flickr.com

Quando a rua tem muito buraco, não há alternativa: é preciso reduzir a marcha. O que dá outra dimensão ao trajeto, ao nosso olhar e à própria rua. A gente, que se acostumou a fazer do carro uma extensão dos pés, passa rápido demais pelas coisas. Não dá tempo de notar nada.

Naquele dia fui pela rua de baixo, para variar. Feita de terra, ela não é um convite à habitual pressa que, como dizem, não vai muito com a cara da perfeição. Muito menos depois de um chuvão como aquele da semana passada. Mas quem é que queria perfeição naquela hora? Fui devagar, como pedia a circunstância. A cachorrada zanzando tranquila. As vizinhas que nunca vi, trocando cachos de banana verde. A primavera púrpura explodindo em flor, formando um arco impressionista na entrada de uma casa. E uma menina escalando o muro com tanta agilidade que parei para assistir. Ela já estava com uma perna do lado de lá, quando me viu. Não teve dúvida: mostrou a língua. Escondeu um sorrisinho maroto e desapareceu do outro lado.

De marca registrada de cientista com cara de maluco a logotipo de banda de rock, botar a língua para fora sempre foi atitude de irreverência, deboche, provocação, brincadeira. Toda criança faz, mesmo sem saber das teorias: faz porque é gostoso. Mas engana-se quem pensa que isso é coisa de criança. Mostrar a língua é, acima de tudo, coisa de gente. Só que a gente vai parando de mostrá-la enquanto cresce. Quando foi a última vez que você mostrou a sua, sem ser para o dentista? Pensando bem, quem fala a sua língua? De que jeito você traduz suas coisas? Como é que você conta para os outros a sua felicidade? Que palavras você usa para amar? Quais são os advérbios da sua tristeza? Que tipo de gramática rege seu discurso? Como é a ortografia da sua história? Qual é, afinal de contas, a sua língua?

Tem língua que vive solta. Sem papas, comprida, vai se enfiando aqui e ali, sem medo de nada. Tem língua que, coitada, está presa. Seu delito: ter falado demais. Acabou detida na boca. Tem a língua da sogra, mas não tem a da nora. Tem a língua de gato. Tem o gato, que toma banho de língua. Tem a língua que separa os mundos. E sempre haverá alguém pagando a língua.

Será que a menina do muro estava me dando algum recado? Ah, se eu falasse a língua dos anjos.

5 comentários em “Língua

  1. Não sei se parei no tempo. Mas no auge dos meus 33 anos continuo mostrando a língua quando acho necessário. Na maioria das vezes quando quero soltar um grande palavrão e não posso. Por a língua pra fora muitas vezes diz mais do que mil palavras.
    Faço isso por carinho também! Tenho um colega de trabalho que só nos vemos na segunda feira e no dia que não mostro a língua ele pergunta se estou triste!

    Beijos na alma!
    Adorei o apelido carinhoso!
    Layla Barlavento
    http://www.culpadowalter.blogspot.com

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  2. Eu mostro muito a língua. Ela vem junto com um sorriso e uma mordidinha de lado. É que um dia me disseram que “mostrar a língua é pedir beijo”. E um carinho não faz mal a ninguém, né?!

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  3. Sil, você foi tão descritiva nessa crônica que parece que eu tava lá vendo a cena. E rindo. Haahahaha
    Você descreveu tudo! Cheiro, sentimento, gente.

    Incrível, incrível, incrível.

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  4. Hehehe, acho que há tempo não mostro a língua pra alguém, mas bem que gostaria, por pura pirraça, como quem diz, “bem feito”… mas a boa educação nos poda, nos prende os braços as pernas e também a língua.
    Parabéns pelo texto, muito lindo!
    e um beijão!

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  5. Sil….lindo. Adorei. Até com lingua vc consegue escrever poesia.
    Sabe que a Letícia mostra a lingua direto!!! Não sei se é reflexo ou ela se comunicando e tentando me dizer (ou dizer aos outros alguma coisa).
    Sei que é a coisa mais fofa. E tomara que ela continue mostrando a lingua ao longo da vida.
    Beijos de quem esta precisando sentar para te escrever com calma.
    Ana

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