Fingimentos

Entrei no restaurante e avistei, em uma das mesas, uma amiga. Ela não me viu. Adivinha o que eu fiz? Fingi que não a vi. Na esteira rolante do fingimento, servi-me, sentei-me, almocei, paguei a conta, vim embora. E passei o resto do dia arrependida e tentando compreender porque diabos eu fiz aquilo.

Gente é o único bicho que finge, e não são só os poetas. Alguns animais até juramos que são capazes de fingir. Você dá uma bronca no gato e ele olha para o lado, ou começa a se lamber, “Não é comigo”. Mas, em tese, somos os detentores da qualidade. Quem não finge na vida? Que não sabe de nada, ou sabe tudo. Que está dormindo, triste ou com dor. Que está passando mal (para se livrar daquela reunião chata, ou de visitar a tia idem). Que está entendendo tudo. Que está tudo bem. Tem aquele que finge não estar prestando atenção na conversa dos outros. Não ter visto que havia mais pessoas na fila. Que finge que é cego. Ou surdo. Gente que finge amor. Simpatia. Compaixão. Prazer. Gente que finge que esqueceu. Que se finge de bobo. Ou que é inteligente. Que não viu o garoto pedindo um trocado. Que não recebeu o email. Há quem finja interesse em história boba. E, veja só, tem até quem finge não ver a amiga no restaurante. Mas ninguém finge raiva, nem ódio. Fingimento deve, portanto, servir só para coisa relativamente positiva. Alguém finge ser invejoso ou cruel?

E por que se finge, afinal? Qual o mecanismo por trás do fingimento? Fingimento é camuflagem. Falsidade. Espécie de mentira – porém, amparado numa verdade. Fingir para agradar alguém é submissão. Para se sobressair em algum aspecto, vaidade. Para não admitir falhas: perfeccionismo. Para não errar, medo. Fingimentos podem até ser sinceros, por que não? Nem todo fingimento é baseado numa intenção má. Aliás, poucos devem sê-lo, de fato. (Finja que acredita nisso, por favor.) Fingir é humano, ancestral. Crianças fingem que estão cozinhando para as bonecas, pilotando um foguete. E se divertem até.

No caso da minha amiga, nada me convenceu. Então não gosto dela? Sim, gosto. E muito. Eu estava com pressa? Nem um pouco. Eu lhe devia alguma coisa – dinheiro, informação, satisfação? Nada. Ela estava acompanhada e eu não queria incomodá-la? Não. Eu estava acompanhada? Também não. Então é simples: sou uma besta. Só não sei disso. Ou sei – e finjo que não sei. E se minha amiga também tivesse me visto, e resolveu fingir que não? Rá.

Pensando bem, tem a preguiça. Preguiça de ir lá, cumprimentar, contar como vai a vida, o trabalho, as crianças, o livro que um dia sai. Tem horas em que é bom sossegar a fala, fingir-se de muda. Poupar a língua da alma.

Passei a tarde angustiada. De verdade, sem fingimento. Das duas uma: conto tudo para minha amiga, ou finjo que nada aconteceu.

15 comentários em “Fingimentos

  1. Silmara: tenho adorado ler os seus textos! Tão profundo que chegam a mexer comigo! Obrigada por me fazer sentir bem!
    Vi que você mora em Campinas – cidade onde nasci! Hoje moro em Valinhos. Te encontrei através do blog Sala da La. Beijos, Mônica

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  2. Oi Silmara, estou chegando lá da Bel, pois li seu texto lá.

    Adorei seu cantinho e esse seu texto.

    Nossa! Quantas verdades.

    Eu tb já fiz isso e fiquei como vc me indagando e com sentimento de culpa. Descobri que eu na verdade nao queria cumprimentar ninguém, queria ficar na minha, como vc escreveu: eu queria sossegar a fala ou talvez simplesmente me ouvir, ficar a sós comigo, comer sozinha…

    Parabéns pelo texto.

    Um grande abraco

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  3. fingirei que isso foi apenas mais uma coisa que li, que não teve importância alguma e que não parei para refletir nas minhas atitudes..

    meus parabéns! esse ganhou de todos os seus textos que ja tinha lido!

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  4. Um dia fiz isso no ônibus com um rapaz que foi meu amigo na adolescência. E foi por preguiça mesmo. E um certo receio de dizer que não fiz nada da vida ainda (nem fingir ser publicitário eu consegui! rs), enquanto ele já é médico…

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  5. Eu gosto de vir aqui. Sem fingimento, você sabe.
    Não se cobre tanto. Todo mundo finge isso, de vez em quando.
    Se fosse você, fingiria que não liga pra isso.
    Abraço!

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  6. Silmara!
    Que saudade de ler seus textos!
    E que delícia de ler esse… Acho até que vou fingir que não li, pra voltar depois e ler como se fosse a primeira vez =)
    Muitas vezes o fingimento é filho da preguiça, que dizem por aí ser a mãe de todos os vícios.
    Fingimos por ter preguiça de aceitar, preguiça das pessoas, preguiça de sofrer…
    Fingimos porque somos absolutamente humanos…

    Um beijo procê!

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  7. Silmara,

    Isso já me aconteceu tantas vezes… Em umas, fiquei como vc, me torturando e profundamente arrependida da minha atitude. Em outras, porém, realmente achei que o era o melhor a ser feito. Como vc disse, talvez estivesse num momento preguiça, com vontade de me calar, de ficar quieta no meu cantinho, sem ter que responder, talvez, a algumas perguntas difíceis de serem respondidas.

    bj

    Ivana

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  8. haha, mais um texto muito bom! É isso mesmo. Nós somos umas bestas. Mas também concordo com o final: preguiça de conversar, se explicar, ouvir. Ah, isso é legítimo também. E há momentos em que a gente quer mais é ser invisível mesmo. E comer em paz.
    beijos

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  9. fingir faz parte da natureza humana, acho que tem algo de sobrevivência, quando finjo que não vejo alguém é pq não estou a fim de falar, mas convivo bem com isso.

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  10. Oi Silmara!

    Depois desse texto gosto ainda mais de você! Gosto de pessoas humanas, bem humanas… e você é uma delas!

    Bjs no coração

    Nara

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  11. A gente finge para se proteger e proteger os outros. Do quê, meu Deus? Da realidade, da obrigação, do que é politicamente correto e educado.
    Sabe que eu acho que as vezes transgredir as regras faz um bem danado, portanto, se depender de mim, você está perdoada.
    Beijos!

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  12. Se ela ler este texto, vc nem vai precisar contar… ela pode até fingir que não sabe que é pra ela… Quando me maquio pra uma festa, de certa forma é também um finjimento… finjir que a pele não te manchinas, que os os olhos são encantadores e a boca tem um brilho próprio, os cabelos brilham e o corpo é perfeito sob o vestido… pequenos finjimentos da festa, pequenos finjimentos da vida. Desde que não magôe alguém, não é pecado. Mas, e se nos magoar, a nós mesmos, que fazer? Finjir que não?

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