Horário de verão

Ilustração: Mike Sagmeister/Flickr.com

O moço do caixa passava suas compras e quis saber se ela já adiantara o relógio. Ela colocou os mirtilos na esteira – era a primeira vez que via aquela frutinha azul –, abriu a bolsa e procurou o celular. Há anos o relógio ficara órfão do seu pulso, agora só conferia as horas pelo visor do telefone. O tempo definitivamente saíra da frente dos seus olhos, perdendo-se para sempre na barafunda na bolsa.

Não, ela ainda não havia ajustado a hora. Seu dia, portanto, acabava de ficar mais curto. Uma hora a menos, suspirou. E, como o coelho branco de Alice do País das Maravilhas, lembrou: estava atrasada.

Apressou-se em embalar suas coisas: o sorvete com o sabão em pó, a goiabada longe do queijo, o peixe para o domingo junto com a lasanha da segunda. Despediu-se e voou para casa.

No carro, caminho de volta, uma música fez questão de acompanhá-la pelo rádio:

És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo tempo tempo tempo

Descarregou as compras e foi acertar os relógios. E não adiantou apenas uma hora, mas sim várias. Teve uma ideia: na folhinha atrás da porta, avançou um dia inteiro. Uma semana toda. Chegou ao mês seguinte. E quando se deu conta, havia ido parar a dois verões depois daquele dia no supermercado.

Desanimada, ela constatou que naqueles anos a única novidade havia sido os mirtilos. A pós-graduação não saíra do papel. A reforma do apartamento não passara da cozinha. Não conhecia o rosto do filho. Que nem nascera, pois não tivera coragem de dizer sim ao homem da sua vida. A caixa com os livros da última mudança ainda estava num canto da sala. E seus pais aguardavam sua promessa de levá-los para um cruzeiro. Achou que era hora de acertar os ponteiros com o tempo.

Entro num acordo contigo
Tempo tempo tempo tempo…

Não seria fácil, ela sabia. Mas combinou que voltaria ao dia do supermercado e, sem pressa, saborearia os mirtilos. Faria a matrícula na universidade, assim que chamasse o namorado para uma conversa séria. Teria uma semana para libertar seus livros do cativeiro de papelão. Marcaria as férias e ligaria para os pais. E decidiria, enfim, que os azulejos da cozinha seriam azuis. Em homenagem aos mirtilos. Ou blueberries.

Ficariam amigos, ela e o tempo. Não só em todas as estações do ano, mas nas de trem, nas de rádio. E, como uma promessa, lhe diria:

… acredito ser possível reunirmo-nos
Tempo tempo tempo tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo tempo tempo tempo

11 comentários em “Horário de verão

  1. Que tudo desse texto, inda mais tendo meu amado, idolatrado e maravilhoso Caê entremeando suas ideias: ficou lindo.
    Sabia que conheço Caetano, abracei, tirei fotos e ele sabe até meu nome? (momento gostar de aparecer no post alheio).
    “Num outro nível de vínculo”

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  2. Oi Sil…

    Adorei…nada estar em paz com o tempo!! Ah! Adoro a Geléia de Mirtilos St Dalfour, mirtilos me levou a lembrar de uma doce época da minha vida…obrigado.

    Beijos

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  3. Adorei!!! É verdade, fazer as pazes com o tempo faz um bem enorme!! E acabamos descobrindo que o tempo mais importante das nossas vidas é hoje!! Não deixe para amanhã, por que amanhã pode ser que estejamos já em outro plano…
    Uma semana iluminada!!

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  4. E no meu estado não há horário de verão, e as meninas se acostumaram a ver a hora pelo computador e pela tv. Ganharam uma hora hoje! E lá fui eu, desajustar horario de verão no computador…

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