No país do espelho

Ilustração: Frank Bonilla/Flickr.com

Entrei feliz no provador, encontrara o jeans que eu procurava. Era um desses provadores com dois espelhos. Fechei a cortina e levei um susto. Vi minha imagem projetada no espelho da frente, que se projetou no de trás, que refletiu na frente e novamente no de trás, e assim sucessivamente. Entrei sozinha e agora éramos muitas. Incontáveis e idênticas.

Brinquei de ser várias, como sempre desejei ser quando criança. Naquele metro quadrado comandei um exército de mim mesma, num balé perfeito. Como as moças do nado sincronizado. Mas o país da água era diferente do país do espelho, onde nem era preciso ensaio. Bastava levantar a mão, e todas acompanhavam. Que Esther Williams, que nada. Sou mais a Alice.

Minhas cópias bem que poderiam sair do espelho e vir dar uma mãozinha. Uma não, várias. Se duas cabeças pensam melhor que uma, o que dirá de infinitas? Enquanto uma trabalharia sem trégua, outra viveria eternamente em férias, trazendo presentes do mundo inteiro para todos. Uma seria mãe em tempo integral, outra não perderia uma festa. Uma cuidaria da casa, outra só dos bichos e das plantas. Uma cozinharia coisas gostosas, outra se dedicaria aos amigos.

Uma leria todos os livros e revistas que existem, outra escreveria livros e mais livros. Uma aprenderia a tocar piano, outra faria um mestrado. Uma tomaria café com os amigos todas as tardes. Outra seria cantora de bossa nova, que nem a Astrud Gilberto. Uma se engajaria na política, outra passaria o dia comprando sapatos novos.

Uma acordaria e dormiria tarde, outra dormiria e acordaria cedo. Só para viver o dia na íntegra. Uma compreenderia todas as coisas do universo, outra não estaria nem aí. Uma saberia com quantos paus se faz uma canoa, outra só saberia remar. Uma seria doce, gentil, educada, talentosa e resiliente, e agradaria aos outros o tempo todo. Outra seria livre para mandar todo mundo lamber sabão quando desse na telha.

Múltipla assim, eu daria conta de ser e fazer tudo o que eu quisesse, precisasse e inventasse. Vinte e quatro horas seriam mais que suficientes. Mas nem tudo seriam flores: eu e minhas cópias continuaríamos a ter o mesmo DNA, os mesmos pontos de vista e as mesmas opiniões, tudo sincronizado como as moças nas piscinas. Mais que clones, elas seriam a réplica de tudo o que há em mim. De bom e de ruim. Defeitos duplicados, manias triplicadas. Pensando bem, um bando de mim não teria assim tanta serventia.

Ficou bom?, a vendedora perguntou lá fora. Fiz um sinal com o dedo em frente à boca, Shhhh. E ficamos todas nós bem quietinhas. Apanhei minhas coisas e despedi-me delas com um aceno, prontamente retribuído.

Saí da loja sozinha e feliz com a compra. A calça jeans estava em promoção, e a barra ainda saiu de graça.

9 comentários em “No país do espelho

  1. Gente! Se sendo um só eu já tenho crise de identidade, imagina sendo vários?! rs
    Mas adoraria poder aprender piano enquanto outro aprenderia flauta transversal enquanto outro estaria na aula de capoeira enquanto outro faria dança de salão enquanto outro…

    Curtir

  2. Sil, porém nenhuma seria completa como vc!!!!! Permita-se ser um pouco de cada e vivier feliz!!! É assim que somos…..mas seria bom ter algumas para ajudar nas tarefas mais chatas….(risos)!!!!
    Com relação ao livro…..acho que está mais do que na hora….Vamos agitar isso ?
    bjos e saudades.
    Debora

    Curtir

  3. Silmara: não acha que está na hora de publicar um livro? Olha, que a “voz do povo”…
    Poderia encarregar um de seus clones, enquanto você, continuaria por aqui, dando conta de escrever para nos deliciar.
    Sabe o que acho pior nessas cabines de loja? É que enxergamos todos aqueles nossos defeitinhos que insistimos em ignorar no espelho de casa. Na cabine, não tem pra onde fugir: estão todos ali, com lente de aumento e clonados. Saio às vezes, deprimida…
    Olha, observação nada-a-ver com o post, mas com você: acredita que só agora fui dar uma olhadinha na “dona do blog”?! Acho que, por chegar aqui e ler o que escreve, já me basta. Mas, e não é que você é muito bonita?! (Tá bom, não precisa ficar vermelha.) Eu também tenho uma daquelas fotinhas, feitas na escola, com direito à bandeira atrás e caderninho na mesa. Uma relíquia do tempo, né?
    Muito prazer em lhe “conhecer”, Silmara!
    Abraço!

    Curtir

  4. Seria da Silmara escritora de livros e livros que eu me aproveitaria. E concordo com o comentário da Cris Guerra: Você já nasceu best seller. Só falta publicar.

    Curtir

  5. “Uma saberia com quantos paus se faz uma canoa, outra só saberia remar.” Não queria mais que isso… rs
    Adorei e adorei o jeito elegante de mandar lamber sabão… Eu já mandava outra coisa haha

    Curtir

  6. Sil………..
    Lindo, lindo, lindo.
    E cá estou eu, tentando ser várias: mãe, profissional, irmã.
    Querendo dormir pouco, mas sentindo um sono imenso. Doida para ficar quieta com minha Letícia e sentindo o desejo da cerveja gelada descompromissada num buteco da esquina.
    Sozinha e feliz. Mas sentindo falta de alguém…
    Ah…vai entender esta nossa natureza humana.
    Só mesmo vc, com sua sensibilidade para traduzi-lá tão bem.
    Beijos, beijos, beijos.
    Ana

    Curtir

  7. Sil…
    Quantas vezes somos múltiplas, sendo uma… mãe, mão, mulher, namorada, amada, chata, brigenta, teimosa, cozinheira, motorista, lavadeira, diarista, artista, arteira, dona de casa, dona do tanque, senhora de si ou fora da casinha… somos tudo e mais um pouco…
    as vezes, queria ser só eu mesma… mas acho que não saberia…

    um beijinho
    Josi

    Curtir

Quer comentar?