Foto: Jim Frazier/Flickr.com
Viagens no tempo são sempre fascinantes. A vontade de pousar noutra época vive no imaginário das pessoas desde que o mundo é mundo. Por curiosidade ou arrependimento, a gente vive querendo dar um pulinho na história, para trás ou para frente. E nessa hora qualquer coisa serve de transporte, nem precisa ser máquina do tempo.
Pois eu acabo de arrumar um bom transportador. Ganhei o livro de um amigo de infância. (Desses que a gente conhece depois de grande.) O título vai logo avisando que os sonhos não envelhecem. É sobre os rapazes que, nos anos sessenta, inventaram de compor, cantar e tocar de um jeito que só eles. Eles não sabiam disso na época. Mas cada canção daquela turma é, para mim, motivo para o desejo de viajar. Só para dar uma espiada em como tudo começou. Para ver, sobretudo, o Milton antes de ele ser o que é. E o bom de viajar no tempo é que a gente pode inventar umas coisas aqui e ali.
Minha viagem foi de trem. Porque viagem no tempo que se preza não é assim, pá-pum, como nos filmes. Não é só dormir e acordar em outro século. Nem é atravessar o fundo falso de um armário e dar de cara com castelos e távolas redondas. Muito menos entrar num carro maluco e encontrar seus pais quando eles nem sonhavam em se casar. Viagem para Minas Gerais, inclusive as que cruzam o tempo, precisa ser contemplada. Eu até que fui perto – quatro décadas atrás – mas sacolejei um bocado na velha estrada de ferro. O livro e eu.
Desço na estação de Belo Horizonte. Confiro nos jornais de uma banca o dia em que cheguei. Abro o livro: esse está bom. Não foi difícil achar a avenida Amazonas e o tal do Edifício Levy, onde parte da turma morava e se reunia no começo. Como os tempos eram outros, entro no prédio sem precisar dizer a ninguém aonde eu vou. Nem ser anunciada. Ponho o livro sob o blusão, pego o elevador e subo ao 17º.
Toco a campainha e uma senhora abre a porta. Apesar de estar ainda na página trinta e sete do livro, deduzo que é dona Maricota, mãe do Márcio, o Borges, contador da história. Ela me olha da cabeça aos pés. Eu deveria ter colocado um vestido, ninguém usava moletom ainda. Finjo que sou uma conhecida e arrisco: Os rapazes estão aí? Torço para que ela entenda; se eu tiver que explicar alguma coisa, estarei perdida. Ela sorri e me convida a entrar. Pergunta se eu não sou a irmã de uma vizinha lá de Santa Tereza. Aproveito a deixa. Ela aponta o “quarto dos homens” e lá vou eu. No corredor, ela me chama, e eu estremeço. Eu ia levar esses biscoitos para eles, mas você pode levar. Preciso tirar o feijão do fogo.
Bandeja na mão, livro escondido, descubro o quarto pelos acordes que vêm dele. Estremeço de novo: onde é que eu havia amarrado minha égua? Não tinha ideia do que veria. Mas sabia que um Milton de boina é que não seria. Respiro fundo e bato duas vezes na porta.
Quase certeza: é o próprio Márcio, novinho, quem abre. Comecei a achar péssima aquela história de viajar no tempo. Ele me olha da cabeça aos pés, não entende o tecido da minha blusa. Perpetuando a confusão, vou logo dizendo que sou irmã da ex-vizinha e só estava entregando o lanchinho. Os quatro rapazes param de tocar. Um Milton – muitíssimo diferente, sentado em uma das camas – me salva, Já estava com fome. Não resisto. Então você é o Milton Nascimento… Ele corrige, enquanto abocanha um biscoito: Milton do Nascimento. Solto: Ninguém fala o ‘do’.
A situação, já esquisita, fica insólita de vez. Meia dúzia de palavras trocadas, estico os olhos para os papéis sobre o criado-mudo, na ingênua esperança de ler alguma coisa familiar. Sinto o livro querendo aparecer sob o blusão. E, sem ter nada a dizer, despeço-me, tentando decorar cada centímetro do que vira. Digo que preciso voltar à estação. Os rapazes já devoraram os biscoitos e agora retornam ao ensaio.
Já estou de saída do quarto quando Milton pergunta, Qual trem você pega? Invento, já que para viajar no tempo qualquer um serve: O das dezoito. Ele acena e diz: Depois, mande notícias do mundo de lá.
Que ótima viagem!
Eu moro no edifício Levy e morro de curiosidade sobre aquela época.
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Eita! Que delícia de viagem… mas eu sou tontinha, diz aí o nome do livro, please!
Eu quero pra mim… o trem, a viagem, o quarto dos homens, os biscoitos… e as notícias do mundo de lá!
Bjooo
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JesusMariaeJosé…realmente as palavras acalmam e nos fazem viajar sem sair do lugar…
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Essa viagem foi tão linda, que até daqui eu senti o sacolejar do trem. Ficou faltando só um pão de queijo, rs. Nada como um livro capaz de nos levar a lugares diversos.bjo!
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Hehe… eu adoro clube da esquina.. inclusive postei uns dias atrás minha memória de faculdade, embalada pelo som deles: http://alcampanha.blogspot.com/2009/09/desde-1998.html
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Ai Sil…..
Você como sempre ótima!!! Um texto lindo de viver!!!!
Menina, mas que vontade que deu de te pegar pela mão e fazer contigo uma viagem nos tempos atuais. Nada de passado ou futuro.
A BH de hoje, a BH que eu tanto amo: do delicioso bairro de Santa Tereza (pertinho da minha casa), da praça da Liberdade num fim de tarde, da praça JK num sábado ensolarado. A BH da praça do Papa para ver a cidade toda iluminada á noite.
Levar vc para o Café com Letras, para a Cantina do Lucas no Maleta e para o macarrão do Bolão na praça Santa Tereza.
Sentar no Chiarella para almoçar e esquecer da vida.
E te levar para conhecer o Rommel no delicioso Jerimum em Macacos, que foi um frequentado pela nossa queridíssima Cris Guerra.
Ai Sil….pena que o tempo será tão curto….
Beijos, beijos
Ana
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Ah! Só pra dizer que lembrei de você ontem enquanto assistia, no Conservatório, ao DVD “A sede do peixe”. E pra afirmar que vou pensar em você no show do Milton sábado. rs
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Acredito que você viajou no mesmo trem que eu. No mesmo vagão, pra ser bem exato. E posso garantir: ainda tem muita emoção pela frente. Estou muito, mas muito feliz. E muito emocionado. Quando voltar pras bandas de cá, não esquece de parar da “estação do nosso café”.
Um beijo com carinho e com uma saudade gostosa, que tem gosto de suco de laranja e chá de maçã.
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Amo mais ainda seu “amigo de infância” por ser, de certa forma, o condutor desse trem.
Lindo, lindo e lindo o texto. De emocionar.
Quero taaaaaanto ler esse livro também.
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Eu tenho esse livro e também fiz essa viagem. Só no tempo, pq pertenço a esse espaço. Acredita que, morando em BH, não sei onde é o Levy? rs. Mas sei da Rua Rio de Janeiro, que eu subi e desci diariamente por dois dos melhores anos da minha vida, quando estudava no Estadual Central em que eles tbm estudaram. E do bairro de Santa Tereza, onde sonho em morar um dia. E da Cantina do Lucas, no Edifício Maleta. E de toda essa Belo Horizonte que eu amo e que parece que vc tbm…
Amo a parte em que ele conta como compôs “Um girassol da cor do seu cabelo”…
Um beijo grande
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Aposto que foi uma boa viagem! Ainda mais pra encontrar o Milton…
um bejinho Sil.
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Incrivel como alguns estao sempre a frente de seu tempo.
“Ninguem fala o do” foi otimo! Me senti como se viajasse no trem com voce.
Abracos.
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