Arquivo pessoal
De vez em quando é bom passar um tempo com quem já partiu. No Dia dos Pais eu vesti o colete que fora do meu avô. Na semana seguinte, enquanto eu procurava no meu armário o que usar, bati os olhos em uma roupa. E senti saudades da minha mãe. Meu avô sempre dizia que não era certo filho ir primeiro que pai. Um dia ele viveu aquilo que não concordava.
Dona Angelina fazia umas panquecas que eu nunca vi igual. A coisa mais simples do planeta: uma em cima da outra, muito molho de tomate. Só. Sem recheios nem firulas. Uma torre de panquecas. Construída aos poucos, no calor da velha frigideira cheia de furinhos em relevo que eu jamais soube onde foi parar.
Sempre tive dificuldade para pensar na minha mãe como uma jovem dos anos sessenta, onde quase tudo parecia estar em ebulição – música, comportamento, política. Dona Angelina era dona de casa exemplar. Dois filhos, mais eu chegando no finalzinho da década. Mamãe não fervia. (Ou fervia. E eu preferi acreditar no contrário.)
Por aqueles anos, ela foi madrinha de um casamento. Eu nem era nascida. Ela, que nunca teve dinheiro sobrando, foi esperta: investiu em algo que usaria depois. Comprou um conjunto, espécie de tailleur, na Prelude (chique, na época). Vermelho, num suave xadrez com preto e azul marinho. Ela só não imaginava que a aquisição fosse render tanto.
Quarenta e cinco anos (estimados) depois daquele casamento, apanho do cabide o que guardei daquele conjunto: a blusa com o casaqueto. A etiqueta ainda está lá, amarelada e puída. Mas o poodle, marca da confecção, continua empertigado em seus pompons. Digo bom dia ao totó, visto a blusa e vamos, mamãe e eu.
Ela me dá o braço e vai contando, com certa pena, que a saia do conjunto, de tão usada, não sobreviveu. Disse estar espantada como a peça combina comigo, ela pensava que éramos mulheres bem diferentes. Mamãe, às vezes, acha que eu deveria ferver menos.
Pergunto como vai a vida do lado de lá. Ela olha para o céu, em seguida para o chão. Desvia da fila indiana de formigas e me conta (de novo) a história de um tio que desdenhou dela ao vê-la, muito criança, em frente a um formigueiro, caprichando no plural: “Quantas formiguinhas!”. Só para se divertir, ele mandou que ela colocasse a mão ali. Ela obedeceu. E as formigas não tiveram dó.
Rimos mais uma vez e nos despedimos com um beijo, como sempre. Antes de ir ela me lembrou: aquela blusa não deve secar ao sol.
Álbum de família, ainda sem mim. As crianças: meus irmãos. Exceto o garoto da esquerda, que eu não sei quem é.
Não a conheço pessoalmente, Silmara, e mas acho seu olhar para as coisas de terna sensibilidade e significado.
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Silmara, muito lindo esse passeio com sua mãe, comovente! Bacana ver vocês duas de braços dados, contando histórias.
Até as ‘formiguinhas’ se comoveram e devem ter pedido perdão pra ela!
beijo grande, querida!
ps. Viu que tem comentário perguntando ‘quais’ (assim no plural, como na pergunta da sua mãe) os títulos dos seus livros?????
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Silmara, ainda não lia você, que bom reeditar um texto maravilhoso como esse!
Já lhe contei que minha sogra se chamava Angelina, era um doce de mulher.
Sem palavras! Um texto apaixonante. Adoro o jeito como escreve. Como me contou sua idade, outro dia, se eu tivesse sido uma adolescente espevitadinha demais, teria idade para ser sua mãe. rs
Mas que bom que a sua foi a Angelina.
E, olha, é a mais pura verdade, ela caminha com você, de braços dados e olhares amorosos. E deve ter vontade de lhe dar umas palmadas, quando você esquenta demais! rs
Beijo, querida.
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Maravilhoso o seu texto…e confesso que chorei muito. Pois minha mãe também já se foi e como a sua, investia em roupas da Prelude. Lembro-me dela a escolher os vestidos, saias, blusas e eu correndo pelos corredores…passando por debaixo das roupas. Minha mãe me dando bronca e a vendedora a sorrir…deixa dona Angela, enquanto isso a srª escolhe a vontade…rs Parabéns pela bela escrita e continue nos presenteando com tal. beijinhos carinhosos
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Nossa amei mesmo
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Lembrei da nossa conversa no dia do café com chá de maçã e suco de laranja, sobre morte, desapego e afins. Eu chego lá.
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Silmara,
termino de ler com lágrimas nos olhos. Amei!
beijo
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Querida, vc ja tem livro publicado? Quais os titulos? Caso nao tem, faca-nos o favor de escrever varios! beijo
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Como é doce até para falar de coisas que assustam o ser (humano).
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Sil, sem palavras… Engraçado que quando li o título, pensei “humm, se o colete do avô, já foi bom, imagine a blusa da mamãe…” Adorei, mais uma vez, fiquei fã.
Beijos da Marie.
http://www.baudamarie.blogspot.com
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Si querida!!
que beleza e leveza esse texto, meu Deus! Vc é mágica menina, mágica das palavras, emociona a gente um tantão assim, ó!
Vc falando e eu imaginando a cena, as cenas… que bonito Si, dona Angelina, que eu desenhei, nao chegou nem aos pés da beleza que ela era 🙂
um bj! com carinho, na menininha que vc ainda é!
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Você pode não acreditar, mas a Prelude ainda existe e creia : No mesmo endereço; com modelos não tão discretos e preços altos como antes…
Enfim, o que quero dizer é que não esqueço, se quer, a voz da adorada Dna. Angelina…………
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Mãe é um ser muito especial mesmo Sil. Eu ainda acho que elas não deveriam morrer nunca. Nunquinha. A minha por exemplo está proibida e eu prefiro acreditar que ela será obediente. Mesmo assim procuro fazer com que nossos poucos momentos juntas sejam sempre especiais…
Beijos na Alma!
Layla Barlavento
http://culpadowalter.blogspot.com
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Que texto lindo!!! Bjs
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E a gente que tem a mãe sempre perto, sempre nos protegendo, sempre nos guiando e encantando, esquecemos de ter esse tipo de conversa durante o dia-a-dia.
Emocionei, de verdade.
Um beijo bem grande, Silmara
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Mãe da gente é tudo mesmo, não é? Mesmo quando o diálogo se trava só no nosso pensamento!
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Seus textos me emocionam tanto… Que lindo encontro com sua mãe!
Beijo grande
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Silmara,
Que texto lindo, você sempre consegue me comover…coisa boa!
Agradeço todos os dias por ainda ter a minha mãe por perto, quer dizer, nem tão perto assim, já que moramos em cidades diferentes, eu em BSB, ela em Fortaleza. Mas é assim que eu a sinto, sempre pertinho de mim. Nos falamos todos os dias por telefone, tenho essa necessidade de ouvir a voz dela. Sempre que nos separamos, é aquele chororô.
Minha mãe é meu porto seguro, o meu rochedo, perto dela, não sinto medo de nada. Queria muito que fosse assim com meu filho, que ele sentisse o mesmo por mim. Vamos aguardar e fazer por merecer. Ele ainda tem apenas 1 ano.
bjs
Ivana
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Eu lembro da minha mãe quando sinto falta de colo e alguém a acariciar meus cabelos. Elas sempre mantinha as unhas longas, acho que pra poder fazer cafuné nos seis filhos que nem uma cosquinha. Isso eu peguei dela, quando vou acariciar minha Aurora 😀
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Lindo, Silmara! bjos!
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sem palavras, de tão lindo…
bj!
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Silmara, você é uma criatura muito inspirada!!! Lindo, lindo, lindo! bjs
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Pode desbotar…
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Eu lembro da Prelude e do poodle! Minha avó costumava comprar roupas lá também. Eu cheguei a ir. E na frente tinha churros com doce de leite, que compravam pra acalmar a criança pequena aqui, que iria esperar os adultos naquele mundo de roupas lindas. Linda a sua conversa com a sua mãe… 🙂
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Sil,
lindo, lindo, lindo!!! Como sempre.
Já te disse e repito, com a mesma sensação ao terminar de ler este texto: sua escrita me lembra muito Adélia Prado. Agora que você esta pelas bandas de cá, seria interessante um encontro de vocês….Sabe que vou pensar nisto….
Beijos
Ana
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