O colete do meu avô

Foto: Denis Collette/Flickr.com

Casa de gente morta não é para gente viva ficar entrando. Se a casa de alguém que morreu fica vazia por um tempo, certas almas pensam que ela está vaga e se mudam para lá. E não se deve incomodar os mortos.

Meu irmão dizia que via ‘pessoas’ na casa dos meus avós. Segundo ele, eram várias freiras enfileiradas cruzando o pequeno quarto deles, indo para não se sabia aonde. Só se sabia que o quarto ficava no caminho delas. Minha mãe não achava aquilo bom para uma criança e resolveu procurar ajuda. Depois disso ele nunca mais as viu. Por certo, alguém pediu para que elas fizessem outro trajeto e não passassem mais por ali. E elas resolveram quebrar nosso galho.

Quando meu avô morreu, anos depois da minha avó, fomos, minha irmã e eu, até a casa dele buscar algumas coisas e separar o que seria doado. Eu não quis entrar sozinha. Não queria ver os mortos que haviam se mudado para lá. Nem as freiras, as conhecidas do meu irmão, agora liberadas para fazer o velho caminho.

Minha irmã abriu o armário. Vi o terno cinza do meu avô, o único que Seu Paschoal tinha. Quase nunca o usava. Foi meu pai, seu genro, quem me contou porque o terno se chama assim. Porque é composto de três peças: calça, colete e paletó. Mas os ternos de hoje em dia raramente têm colete. Deveriam mudar o nome, então.

Pedi para ficar com o colete. Ele acabou guardado no meu armário por muito tempo. Semana passada, decidi usá-lo. Levei-o à costureira para ajustar. Éramos da mesma altura, mas o ombro do meu avô era mais largo que o meu. No dia em que morreu ele parecia tão miúdo. A morte faz as pessoas encolherem. Vida ocupa espaço dentro de nós.

Hoje, Dia dos Pais, é a primeira vez que eu o visto. Saí de casa bem cedo e a vizinha, estranhando me ver em pé àquela hora, perguntou aonde eu ia. Respondi: “Vou passear com o meu avô”. Ela sorriu e lembrou: “Hoje a gente precisa dar um abraço neles também”.

Concordei. Já estava fazendo isso.

19 comentários em “O colete do meu avô

  1. Terno é o conjunto de calça, colete e paletó, do mesmo tecido. E “costume” é o nome do conjunto de calça e paletó, também do mesmo tecido.
    Lindo, lindo, como sempre.
    Beijo, Silmara.

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  2. Interessante…. Fazia um tempo que não passava por aqui… Hoje, com o 1º abraço do meu Pai (estou usando a Blusa de lã azul que guardei…), leio esse texto maravilhoso…

    beijos

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  3. Andei afastada e quando volto encontro esse lindo texto. Sei bem como é sentir-se abraçada assim, às vezes recebo a visita da vovozinha, mas suas palavras deixam tudo ainda mais bonito.
    Um beijo grande!

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  4. Ver pessoas mortas é algo que me intriga.
    acho fascinante ler os relatos das pessoas que dizem ter esse dom e
    sou interessado por este tipo de assunto desde pequeno.

    um grande abraço, Silmara.
    apertado e afagante.

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  5. Olá Silmara, tudo bem ?!
    Pois é, achei seu blog sem querer, li um texto seu e AMEI !!
    Então linkei no meu blog, afinal, leitura boa, interessante e inteligente é sempre bem vinda…
    Beijocas pra vc !
    Clau

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  6. Usei algumas vezes uma camisa do meu avô: tecido fino, alaranjado, levemente justa. Devolvi pra minha avó, era uma lembrança que ela preferia guardar. Mas meu vô me abraça em cada bala de café, daquelas quadradinhas embrulhadas em papel manteiga branco.

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  7. é incrível como seus textos possuem tanta doçura, palavras simples e tão cheias de cuidado…passei por aqui há alguns dias, foi fácil decidir que é um lugar pra voltar. merece um beijo!

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  8. É a primeira vez que acesso seu blog. Estava indo de blog em blog e parei aqui.
    Coincidência ou não, meu avô também tem um terno cinza.
    Me identifiquei muito mesmo com o texto!
    Beijos

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  9. meu pai tinha o hábito de me dar uma gravata de brincadeira pra me abraçar, bem de lve, me fazia rir toda. engraçado foi que, a única coisa material que me ficou dele foi justamente uma gravata que guardo com carinho e que me faz rir ainda, vão fazer 21 anos.

    Bisous.

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  10. Conheci seu blog através do “Hoje Vou Assim” e estou viciada, suas palavras me inspiram e EMOCIONAM .
    Obrigada

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  11. Oi Silmara. Li os seus últimos 3 textos e percebi uma linda conexão entre eles. A busca pela inspiração, os sapatinhos e o colete. Todos eles foram um abraço para mim. Ficarei ainda mais atento aos retratos do dia, para poder escrever melhor e, quem sabe, comover como você. Um beijo!

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  12. Coincidência! Sábado foi o baile de formatura do meu irmão. Meu vestido era de alcinha e estava um pouco frio. Lembrei que minha mãe tinha uma xale que combinava e o peguei. Então, minha mãe me contou que aquele xale era de minha avó, que faleceu há quase 11 anos. Fiquei com uma alegria e uma emoção em meu peito! Falei com meu irmão: “Vovó também vai!”.
    Um grande abraço!

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  13. Silmara, teu texto acordou a beleza desse domingo que ainda se veste de saudade em mim dos que deixaram aqui seus ternos e eternos laços de amor. Teu olhar sensível produz esses milagres, viu só? Transforma a percepção dos leitores… Grande abraço

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  14. Cheguei aqui através de outro blog que acompanho. O texto era Brincadeira Séria, me apaixonei. Seis textos são lindos. Feliz Dia dos Pais à todos papais de sua família. Bjs.

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  15. Oi Silmara! Bom dia!

    Acordei faz pouquinho tempo mas não resisti de vir aqui! Que coisa boa chegar aqui e desfrutar de um texto tão delicioso no café da manhã!
    Sua sensibilidade me espanta!
    Espero que o passeio com seu avô tenha sido bacana!
    Feliz dias dos pais pra vc e sua família.

    Beijos

    Nara

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