Os sapatos da vitrine

 

A gente guarda na gaveta das lembranças que existe em nossa cabeça algumas imagens especiais que, de tão eloquentes, silenciam tudo à nossa volta. Imagens formadas a partir do que vimos de verdade ou do que apenas vimos retratado, ou ainda do que ouvimos dizer. Essas imagens – as reais e as imaginadas – ficam nessa gaveta, num compartimento secreto. De vez em quando elas escapam. E vão se projetar lá na tela da memória.

Uma das muitas imagens da minha grande gaveta é também uma das que sempre me chocam. Nunca compreendi muito bem como é que essa escapa. Mas a cena dos pequenos sapatos de crianças mortas nos campos de concentração nazistas, expostos em um museu que visitei, é, sem a menor dúvida, uma das mais paralisantes, doloridas e assombrosas imagens que já vi. E apesar de ter visto boa parte das coisas que se mostrou ao mundo sobre esses lugares – todas terríveis em sua incompreensível natureza de brutalidade, intolerância e maldade – percebo que da missa não sei a metade.

Mas os sapatos. Poucos objetos dizem mais sobre o holocausto do que eles. O milhão e meio de pares de sapatos de meninos e meninas, mais os quatro milhões e meio de pares dos adultos, são uma espécie de síntese dura e intragável das alucinações de um homem e das co-alucinações de tantos outros.

Estive perto deles por duas vezes. A primeira, há vinte e dois anos, num ex-campo. A segunda, há nove, em um dos museus que se ergueram, não para que o horror fosse perpetuado, mas justamente para que seu oposto seja eternizado. Eu o visitei com uma amiga. Sem muita vontade de estar ali, eu tentava não ver os objetos, as fotografias, as legendas. Mas algumas coisas me atraíram. Não teve jeito.

Parei em frente a uma vitrine embutida na parede, com pouco mais de um metro e meio de largura e altura, e menos de um metro de profundidade. Nela, vários pares de sapatinhos organizados lado a lado. São tão diferentes dos sapatos de criança de hoje. Em couro trabalhado, com fivelas, cadarços e enfeites eles eram, na verdade, miniaturas dos sapatos dos adultos.

Pensei na história de cada um daqueles pares. Um presente de uma mãe amorosa ou de um tio querido num dia de aniversário, com festa, balões, bolo de chocolate e crianças felizes correndo pela casa. Comprado por um pai zeloso para o primeiro dia de aula do filho. Aqueles sapatos participaram das brincadeiras de seus donos. Pisaram as ruas de uma Europa ainda quase tranquila. Sobretudo, foram calçados por delicados, frágeis e inocentes pés.

Minha amiga acenou lá na frente, estava adiantada no roteiro da exposição. Fiz um sinal para que ela seguisse, nos encontraríamos na saída.

Cheguei mais perto da vitrine. E dei asas à imaginação.

E se ali dentro estivessem, de verdade, os donos daqueles sapatos? Talvez uma menina loura de seus cinco anos, com um casaco marrom, tentando me dizer alguma coisa. E um garoto de imensos olhos castanhos vidrados de pânico, carregando nos braços o irmãozinho que dormia, com seus sapatinhos de lã. E mais meia dúzia de crianças, igualmente belas e assustadas. Como num daqueles filmes batidos onde o presente se funde ao passado, imaginei que se eu tocasse o vidro que nos separava poderia ouvir, então, seus gritos e lamentos num idioma incompreensível. Mas a linguagem do medo é universal, assim como o choro. E eu entenderia o que diziam.

Encerrei meus devaneios e fui encontrar minha amiga. Sei que sempre houve e haverá ainda tantas outras crianças separadas de seus sapatos como aquelas do museu, e também as que jamais ganharão esse tipo de honra, e ainda as que nem sapatos terão. Cada uma com sua história triste. Mas hoje, só por hoje, e não sei por que, eu queria poder falar aos donos daqueles pequenos sapatos que, embora desejasse, eu não poderia ajudá-los. Eu conhecia o filme. E sabia como ele terminava.

12 comentários em “Os sapatos da vitrine

  1. Silmara: assisti e depois fiz um post sobre o filme “O Menino do Pijama Listrado”. Podem dizer que é piegas, mas, à medida que a história se encaminhava a um desfecho dramático, sentia minha respiração cortar…Imaginar que pessoas de verdade e, mais que pessoas, crianças, sofreram os horrores daquela guerra, tira o fôlego, mesmo! A gente fica pensando: mas como é que isso pôde acontecer? E, se fosse com algum parente meu?…
    Assim que, fechando nossos olhos, nossa boca, nossos ouvidos, deixamos que acontecesse novamente, como no caso dos hutus contra os tutsis, em Ruanda.
    Guerras, são sempre injustas.

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  2. Meninaaa!
    Toda vez que venho te visitar, me deparo com algo grandioso.
    Teus textos nos envolvem, nos prendem de uma forma única e mágica.
    Um texto que nos faz pensar!…
    Um beijo e bom final de semana!
    Suh 😉

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  3. Sempre me emociono quando se fala do holocausto. Talvez pela proximidade que tive com pessoas que fugiram do horror, talvez pela própria história. Você me fez lembrar delas… Penso nos meus filhos quando imagino os sapatos… Dá um nó na garganta e vontade de chorar pela perda de tantas vidas inocentes e por motivos tão fúteis. Penso na menina loira de tranças segurando uma boneca de porcelana e fico imaginando o que será do futuro das nossas crianças? Peço a Deus que essas vidas perdidas de maneira tão trágica tenha servido ao menos para nos ensinar que só seremos felizes se aprendermos a respeitar as diferenças. Mesmo assim, ainda acho que não se justifica…

    Beijos na alma
    Layla Barlavento
    http://culpadowalter.blogspot.com

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  4. Particularmente hoje estou meio chorona… Sabe, igual a muitas mulheres, se não todas…. Chorei vendo o Jornal Hoje, com uma matéria sobre um papai que acompanhava o parto do primeiro filho. Chorei vendo a Ana Maria Braga, tentando fazer uma brincadeira com quatro crianças num hipermercado escolhendo o que comprariam e se chegassem perto de mil reais nas compras levariam o que escolheram e mais um cartão de compras no valor de mil reais… A vontade era tanta que extrapolaram o valor, pegando tudo que encontravam pela frente e tudo em dobro, pegavam dois pares de sapato iguais para o pai, duas camisetas iguais, duas bermudas, e até os produtos alimentícios e de higiene, tudo em dobro…enfim… fiquei aqui pensando, que elas não tinham idéia de quanto era esse valor, mil reais… um valor totalmente fora do seu mundo. O pai provavelmente nunca pegou na mão uma quantia dessas de uma só vez… imaginaram que era uma grana muito alta… e hoje em dia, mil reais nem é tanto assim, ou é muito?… Fiquei pensando e chorei. Pela brincadeira inofensiva e até divertida e no que se transformou. Para uns tão pouco, para outros tanto. Para quem mais precisa uma quantia que não se sabe mensurar. Chorei ao ver novamente a novela do congresso. Falcatruas, coronelismos, xingamentos… chorei pelo tempo que eles perdem, com o dinheiro que gastam, com a inutilidade de suas vidas…a futilidade de suas vidinhas mesquinhas… Chorei, porque a água do tanque transbordou e eu tive que lavar a lavanderia novamente…Chorei porque me senti enganada na Renner, quando fui pagar a conta tudo de uma vez e descobri que eles cobraram um seguro das 7 parcelas que eu estava adiantando… não entendi o porque… Enganar está tão banal que nos sentimos ridículos quando somos honestos… mas prefiro parecer ridícula mesmo a me juntar a turba dos espertos…. Chorei agora com teu lindo texto… mas agora chorei aliviada, pois de certa forma, nossos problemas, nossas fraquezas, nossas vidinhas e as dos nossos políticos não chegam aos pés do que foi a história desses sapatinhos…
    Desculpe, Sil, pelo desabafo…

    Um beijinho choroso
    Josi

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  5. Palavras podem as vezes serem só palavras…mas nunca as suas pois parecem sempre virem do fundo da alma…traduzem com tamanha perfeição todo o sentimento escondido dentro da gente!
    Lindo texto alias como sempre!

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  6. ‘Mas a linguagem do medo é universal, assim como o choro. E eu entenderia o que diziam.’
    Certamente que é. A visão de olhos aflitos é algo que expõe mais sentimento do que mil palavras que tentam – em vão – expor tal sensação.
    Tema delicado, porém preciso. Fez uma ótima abordagem e novamente me prendeu do início ao fim – em um fôlego só!

    Grande abraço, e saiba que apesar da correria do dia-a-dia sempre passo por aqui.

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  7. Tá, se você queria me fazer chorar, conseguiu.
    Eu fico numa dúvida terrível se quero desesperadamente visitar um ex-campo desses ou se não suportaria nem chegar perto.
    :p

    Bjo!

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