A mulher das cocadas (ou: Sobre a confiança)


Ilustração: Larry Wentzel/Flickr.com

Responda rápido: a campainha toca, você atende, uma mulher que você nunca viu lhe oferece cocadas. Você compra?

Em dois mil e nove: nunca.

Em mil novecentos e setenta e pouco: se a iguaria parecesse boa, sim.

Foi assim que na Mooca dos imigrantes italianos, numa pequena vila com quatro casas, a mulher das cocadas ganhou sua freguesa-mirim. Que se lembraria dela até hoje, embora não soubesse seu nome, muito menos de onde vinha.

Mas sabia que vinha. Geralmente uma vez por mês, a mulher aparecia com seus doces. Uma senhora negra, arredondada, de bochechas sorridentes. Gentil. Quarenta e poucos anos, no máximo. Fazedora da cocada mais gostosa que já comi em toda minha vida. Cremosa, açúcar na medida certa – nem a mais, nem a menos. Flocos de coco num mar de leite condensado. Firmes e bem modeladas. Vá lá, há certa dose de nostalgia nisso tudo. Talvez fosse uma cocada comum. Mas o sabor dela e a imagem da mulher ficaram guardados na memória da menina de seis anos, naquele compartimento que costuma dar zoom em tudo: os sentimentos e as sensações das coisas boas e das ruins. E quando tem açúcar na parada, a lembrança fica cristalizada, doce, eterna.

Na primeira vez minha mãe comprou só algumas. “Para experimentar”, explicou. A mulher prometeu voltar para saber se havíamos gostado. Ela voltou, e os pedidos aumentaram. Até que um dia não houve mais pedido. Porque a mulher desaparecera. Ficamos órfãos da cocada.

A cocada branca da mulher negra ficou para trás. E o tempo trouxe outra dúvida: o que foi feito da confiança, esse sentimento que, ao lado da generosidade e da gentileza, movem a humanidade? Minha mãe olhou nos olhos da mulher, e a opinião saiu na hora. Ela não prestou muita atenção na maldade e no perigo que poderiam estar escondidos, disfarçados na forma de uma senhora bondosa e risonha. E deu certo.

Hoje só compramos alimentos que tenham nome, sobrenome, endereço, informação nutricional e prazo de validade. Sabe-se lá como é que a mulher fazia suas cocadas? Não importava, essa era a verdade. A cara dela era boa. A da cocada, melhor ainda. Pronto.

As relações pareciam mais simples, antigamente. Binárias: sim ou não. Longe do meio-termo medroso e cheio de dúvidas traduzido no “talvez”, “depende”, “mas e se” de agora. Sim, a nostalgia é uma forma de homenagem ao passado.

Mas confiança não deveria ser coisa do passado. Me diz: como é que a gente resolve essa parada?

12 comentários em “A mulher das cocadas (ou: Sobre a confiança)

  1. me fez lembrar minha infância. Morei alguns anos em Minas Gerais, cidade pequena, todo mundo se conhecia, as senhorinhas sentadas nas portas de suas casas tricotando, as crianças brincando de bola logo ali à frente, o padeiro chegando em sua bicicleta com uma cesta enorme carregada trazendo pãozinho fresco feito na padariazinha simples quase caseira. E sim, muitos desses vendedores de cocada, geléias, doces, etc… bons tempos de tranquilidade! Minha mãe sempre comprava, era freguesa mesmo, e nós filhos agradecíamos e tínhamos sempre uma merenda gostosa pra levar pra escola. Enfim, e olha que nem faz tanto tempo assim….
    É realmente estranho quando pensamos sobre isso, praticamente impossível confiar, sequer abrirmos nossas portas as pessoas desconhecidas. O medo ronda, as notícias cada vez mais bizarras sobre a violência nas cidades. Triste….
    Mas espero que ainda nas pequenas cidades do interior conserve essa simplicidade e tranquilidade, a confiança e nostalgia bonita e que lá a violência e o medo passem bem longe.

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  2. Silmara – menina linda! Seus textos são melodias para meus ouvidos!

    Quando eu era pequena – lá no interior de São Paulo, eu morava numa Vila de funcionários de uma hidrelétrica. Haviam muitos vendedores de porta: a moça que vendia yakult num carrinho, o vendedor de leite na charrete, o vendedor de pão e pastéis de vento num cesto, o nordestino vendedor de sapatos numa grande bolsa, o moço do caminhão que trocava panelas e tampas velhas por vasilhas de plástico ou jogos de panos de prato,o vendedor de frutas na caminhonete, e tinha 2 mulheres negras que vendiam 2 coisas que eu adorava! Uma, que eu não como mais que é dobradinha e a outra era o canudinho com doce de coco em calda. Sabe aquele canudo feito de massa de pastel e depois recheado? Então, esse mesmo! Meu Deus aquilo era um manjar dos Deuses! Ela se vestia com uns vestidinhos florais e lenço sempre muito branco na cabeça- os doces ficavam arrumados dentro de uma forma de bolo de buraco no meio, forrada com uma pano de prato branquinho azulado. A gente começava comendo o biquinho de baixo do doce e ia chuapando o caldinho de coco…me lembro como se fosse hoje – minha boca encheu d’agua.
    Mas é assim mesmo, temos que confiar nas pessoas, temos que acreditar na bondade das pessoas que atraímos situações e pessoas boas ao nosso redor.
    Om Shanti

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  3. Gosto sempre de ler teus artigos….nesse, além da saudosa Mooca, fiquei pensando que é na infância que descobrimos os sabores, sejam melhores ou piores, tudo o que hoje, degustamos, é porque um dia sentimos…
    A confiança deu lugar a desconfiança..como a vida se renova, também se renovam nossas disposições, aptidões e reações…
    Agora, a infância se foi, nossas experiências se transformaram e as cocadas saborosas ainda devem existir….em algum lugar, quem sabe….mas me resta uma dúvida : Para onde foi a senhora negra das cocadas brancas??

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  4. na minha casa passava sempre um senhorzinho tocando um sininho e vendendo picolé. era só ouvir o sininho que eu já corria para o portão =]

    tão boa essa intimidade que a gente tinha antigamente.

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  5. Silmara,
    Acho a resposta permeia o resgate da espontaneidade e da confiança nas relações humanas. Quando as pessoas nos parecem boas demais, ficamos até alertas, onde é que vamos parar com tamanha desconfiança?
    É vero que os tempos são outros, as malandragens estão cada vez mais sofisticadas, mas às vezes me pergunto onde foi parar a fé que temos nas pessoas, na sua evolução, no bem que carregam dentro de si! Viver num mundo incrédulo é muito chato. Precisamos resgatar muitos valores.
    Os prazeres não duram para sempre, a cocada está aí como prova cabal desta sentença. Mas eles podem ser vividos enquanto duram. Pois foi na intensidade das mordidas que a cocada ficou em sua memória!
    Felicidades sempre!
    Um abraço,
    Márcia

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  6. É Silmara.Bons tempos.Lá em casa também comprávamos peixe, camarão, sorvete caseiro,…sem saber a procedência e quem era o vendedor.A confiança no ser humano é algo tão restrito hoje em dia, que a solidão humana impera e ataca muitos com a depressão.O homem não se relaciona mais.Sobrevive.Bjs,

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  7. Gosto tantooo do seu jeito de escrever: como conta as coisas e o que nelas você destaca.
    Parabéns!!! Já vivenciamos algo parecedido e talvez na memória de minha filha pititinha (não tão, já com 20…rs) tenha algo assim. Só que a nossa vendedora aqui vendia queijo-trança…
    Tenha uma lindo final-de-semana com sabor de cocada e confiança.

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  8. Lembrei dos vendedores ambulantes de ursos de pelúcia que semrpe passsavam por aqui: minha mãe dizia que não podia atendê-los porque podiam ser ladrões.
    A garotinha de seis anos talvez ficasse encantada com os brinquedos, como eu ficava. Hoje é preciso ter mais malícia que ingenuidade…

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  9. Boa tarde silmara…
    que delícia tudo isso.

    e esse post com sabor de coco que me deixou com agua na boca?
    e essa historinha tão fofa e risonha que me deixou a divagar nos meus pensamentos, imaginando cada uma das cenas que se passaram nessa sua tão narrativa tão convicta.

    maga das palavras, é o que você é.
    grande abraço.
    e um chêro!

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  10. Bom Dia!!
    É a primeira vez que eu visito seu blog e gostei muto…
    Achei bonito na carta que vc enviou para Cristina Guerra que diz que que você tem dois filhos que saíram da sua barriga e um que entrou no coração. Enfim hoje estava precisando de coisas bonita de ler. De aprender algo bom e vi muitas lições no seu blog!!
    Você é só amor!!
    Beijos
    Letícia.

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