Carta para meus pés

 

Neuro74/Flickr.com

Caros

Vamos ser sinceros: lindinhos vocês não são.

Pés são como irmãos gêmeos. Brotaram juntos, nasceram no mesmo dia e hora. Carregam o estigma da alma idêntica, como aqueles bebês espelhados nos carrinhos duplos: mesmas meias, mesmos sapatos. Como é que vocês poderiam ter desenvolvido suas próprias identidades desse jeito? Logo vocês, que dão nome a tanta coisa. Pé de vento. Pé de moleque. Pé de chinelo. Pé direito. Pé de galinha. Pé de pato. Pé de meia. Toda fruta tem seu pé. Toda serra também. Tem o pé na estrada. E tem o pé na cova.

Por muito tempo, depois de adulta, já, eu tive vergonha de vocês. Hoje me envergonho da vergonha. Aprendi a gostar de vocês. Isso não acontece entre as pessoas? Pois então. Às vezes, cismamos com fulano, o ignoramos durante anos, décadas, uma vida inteira. Para, num belo dia, constatar que não era bem assim.

Vocês são iguais aos pés de minha mãe. Arredondados, dedos curtos. Exceto pelo fato de que os dedos dos pés de Dona Angelina, vistos de baixo, pareciam balas de coco. Os seus dedos não se parecem com bala nenhuma.

Seus dedões sempre foram como plantas buscando um sol imaginário. Um vislumbra eternamente a minha esquerda. O outro, minha direita. Dedões paralelos, que jamais se encontrarão no infinito.

A primeira vez que tirei os sapatos na frente de um namorado foi horrível. Na sala, descalcei-me na velocidade da luz, e enfiei vocês dois embaixo da maior almofada que havia no sofá. E lá vocês ficaram, exilados.

Um dia, uma colega de trabalho, que tinha os pés mais feios do mundo, apareceu de sandálias. Aquilo não eram pés, eram mãos que saíam dos tornozelos. Os dedos, longuíssimos e finos, pareciam tentáculos. Fui correndo para o banheiro, tirei as botas, arranquei as meias. Se pés tivessem olhos, os seus ficariam ofuscados com a claridade inédita. Encarei vocês. Tão amassadinhos. Ali decidi: se a amiga podia, eu também.

Comecei a procurar algo que representasse a grande virada em minha vida. Mas que não fosse tão radical. Afinal, meus queridos, eram anos de reclusão. Foi difícil encontrar um modelo que atendesse às minhas bizarras exigências. O namorado (outro) não compreendia como eu poderia pedir nas lojas uma sandália aberta que fosse o mais fechada possível. Resultado: acabava saindo com uma bota na sacola. Mais uma. Para desespero de vocês.

Quem diria. Hoje eu gosto, e muito, de vocês. São bonitos, reconheço. Branquinhos. Capricho no filtro solar, para eternizá-los assim. Eu não deveria tê-los submetido a tanto sofrimento na distante adolescência. Coca-cola, óleos… tudo pelo bronzeado. Que jamais aconteceu: a genética deixou claro quem manda no pedaço.

É hora de pedir perdão aos dois. Pela monotonia das botinhas, espécie de cativeiro para vocês. Por vocês não saberem, por anos a fio, o que era um podólogo. Pela falta de carinho e atenção. Pelos bicos finos, anos a fio. E, mesmo depois da nossa reconciliação, pelos saltos imensos em pleno nono mês de gravidez.

Hoje, metidos nas rasteirinhas abertíssimas que surpreenderiam os ex-namorados, vocês são muito mais felizes. Metade dos meus cremes são para vocês. Vocês passeiam descalços, até mais do que deveriam. Aos trinta e nove anos, pintei suas unhas de vermelho – inédito e histórico – e vocês vibraram. Vocês padecem, ainda, da maldição dos gêmeos, mas o que se há de fazer.

Nada como nossos olhos (aliás, para esses eu também preciso enviar uma cartinha) para nos fazer enxergar a beleza de outra forma, dar novo sentido às coisas.

Recentemente, fiz em um de vocês uma tatuagem. Um sol, para que meu caminho seja sempre iluminado. Mas o que deveria representar o senhor dos astros ficou parecido com uma aranha. Os raios lembram as perninhas. O desenho é bonito, mas se visto, no máximo, a trinta centímetros. Como as pessoas geralmente são mais altas que isso, preciso, com frequência, dizer do que se trata. E explicar tatuagem é o fim da picada.

É bom ter feito as pazes com vocês, ainda que tardiamente. E notar o quão nobres vocês são, perdoando a rejeição e do passado, compreendendo a que ponto chegam as esquisitices femininas.

Nem os pés da Cinderela, com seus sapatinhos de cristal, seriam tão charmosos.

Um beijo em cada um.

Nota: o sol tatuado no pé esquerdo passou por uma reforma, dando à luz uma linda flor. E o direito também ganhou um desenho especial.

17 comentários em “Carta para meus pés

  1. Silmara, adorei! Gostei do seu estilo, do humor e da idéia! Eu não gosto muito dos meus pés, inclusive os maltrato um pouco, mas nunca os escondi! Meus olhos se encheram de lágrimas ao lembrar de sua mamãe, minha prima querida! Bjs.

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  2. Só você para fazer nossos olhos e memoria voltarem-se para os pés…
    Delícia de crônica. Fui imaginando tudo e ao mesmo tempo fazendo um paralelo com minhas próprias histórias pisadas. Pisadas. Pegadas. Caminhos. Sapatos. Calos…
    Bjs nos pés da crônica…

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  3. Eu odeio mulher que odeia seus pés… É broxante! Os pés, assim como o cabelo e os seios são a essência da feminilidade. Quem não admira uma mulher de salto alto, balançando os pezinhos, quando sentada em uma mesa de restaurante? É algo sensual e chamativo. Considero as mulheres anti-pés uma classe que está um nível atrás das demais. Abs.

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  4. Que fofo!!! Eu me identifiquei totalmente com sua história!!!

    Obrigada pelo email.

    Adoro seu blog e seu estilo de escrita. Formidável!!

    bjos

    PS.: passa lá no meu.

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  5. rsrsrs, liberdade aos nossos pezinhos!!!

    ahh eu amo os meus, sao pequenos como a dona, e combinam tanto comigo. Um dia, qd era menina, uma amiga falaou que o dedao do meu pe’era grande demais, redondao, ohhhh fiquei tao magoada, desde esse dia ficava so olhando pros pobrezinhos grandoes, fiquei um tempinho sem usar sandalinhas, naquele tempo usava mt tenins, all star sempre,14 anos… ehh tempinho bom, gente. Mas com o passar dos anos, as sandalias voltram com forca total, e me peguei a olhar meus dedos grandoes… amiga boboca, eles sao tao bonitinhos… e os menores, sao iguaizinhos os de todo mundo que veio da barriga da minha mae, (eeehh todo mundo!!!) levemente tortinhos, eu adoro. E uso MUITA rasterinha,sao minhas preferidas.

    que bom que vc libertou os seus. e eu os meus…

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  6. Oi…
    Como as meninas acima eu também adorei sua carta. faltou mesmo uma foto dos seus pézinhos. Adoro os pés femininos.. e um segredo.. eu tembém tenho vergonha hahaha. e olha que nem sou gay nem nada… sério! No site que estou montando vai ter um álbum de todos os pés que já fotografei. Às vezes convido as minhas modelos em potencial só pra fotografar seus pézinhos. acho que tá ficando legal.. Não são fotografias fetichistas.. apenas uma homenagem como num quadro o obra de arte. Então meninas que têm vergonha ou gostam dos seus lindos pés.. fiquem tranquilas que tem muita gente que adora vê-los. Beijos a todas.

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  7. Sil, eu e o Vagner gargalhamos com sua carta… perdão! não queremos ofender os seus gêmeos! Mas é q meu maior constrangimento sempre foram meus pés…que além de parecerem pés de pato (daqueles q vc tira do sapato, e os dedos se esparramam qual as nadadeiras desse bípede), de tanto usar os sapatos de “bico fino” da moda, apareceram calos sobre os dois últimos dedinhos (ou seriam os primeiros?)!!! Demorei muito a aceitá-los (mãe desnaturada!), mas hoje também convivemos com amor…não me importo com as brincadeiras que meu marido faz…não me abalam mais… Bendita maturidade! rsrsrs bjs

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  8. Aguardo ansiosamente a sua conversa com os seus olhos. risos. .
    Gostei bastante dessa sua carta.
    Eu não gosto dos meus pés, mas acho que nunca vou gostar, mas dou-lhes o devido valor, afinal, eu só fico “de pé” por causa deles.
    Coloquei o seu link nos blogs que visito. E estarei por aqui sempre. Um Abraço bem Forte da Mira.

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  9. Que carta magnífica!
    adorei cada linha escrita, silmara.
    suas palavras são francas e seu jeito de escrever é deslumbrante.

    grande abraço!

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  10. Silmara!
    Que linda carta! Suas palavras são tão verdadeiras, delicadas e cheias de sensibilidade. Uma doçura! Você realmente enxerga a vida com outros olhos, dá um sentido especial às coisas, que ficam ainda mais belas…
    A vida é mesma repleta de surpresas. Te descobri há pouquíssimo tempo, mas passeei bastante por aqui. E supresa maior foi receber sua visita em meu modesto “espaço”. Fiquei lisonjeada!
    Grande beijo e ótima caminhada!

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  11. Adoreiiiiiiiiiii esta carta! Vi meus pés nela. Tadinhos, passaram anos tais como os seus, reclusos.
    Mas eu nunca imaginei algo assim: uma carta pra eles…
    Muito lindo.

    Não espalha: demorei séculos pra descobrir onde eu comentava aqui no seu blog… rs

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