(Des)Encontros com LFT

Faz tempo, foi nos anos noventa. Eu trabalhava no jornal, e há muito já gostava de escrever. Vivia escrevendo coisas e juntando tudo numa pasta velha, Um dia passo tudo a limpo – hoje expressão démodé. Apesar da vontade, eu não tinha muita determinação em ser escritora. Mas um desejo eu tinha: escrever contos como a Lygia Fagundes Telles. Com aquela densidade. Aquela pontuação única e deliciosa, descrevendo os cenários, as pessoas e as almas das pessoas. Eu era, e sou, apaixonada por ela. Percebi melhor essa paixão quando amigos me ligavam para avisar que ela estaria em tal programa na tevê, ou traziam uma revista com ela, ou então quando me davam de presente algum livro dela, Você já tem esse? E eu tinha. Cheguei a anotar seu endereço. E ele ficou lá na agenda, sozinho, calado, platônico. Porque jamais intencionei uma carta, uma visita. Mas tê-lo significava certa intimidade, ainda que apenas para mim. Imaginava-a em seu apartamento, escrevendo e reescrevendo seus contos e romances. E linda.

Pois foi no jornal meu primeiro encontro e meu primeiro desencontro com LFT. Seis e pouco da tarde. Na portaria, eu aguardava minha irmã me buscar, como todos os dias. Enquanto ela não chegava, distraía-me com a Alameda Barão de Limeira e suas feiúras, a estética desconcertante da Boca do Lixo. A portaria de um jornal não dorme nunca, gente entrando e saindo, numa espécie de formigueiro. Mas com formigas especiais, as chamadas formadoras de opinião, o que era bastante diferente. Gente famosa, gente anônima. Importante e desimportante. Os esquisitos e os normais. Mais esquisitos do que normais. Notei um carro que estacionara bem à frente da entrada. Apesar dos vidros fechados e escurecidos pelo entardecer, era possível ver um casal. Conversavam uma conversa final, o passageiro desceria logo. Despediram-se com um beijo no rosto. A porta se abre, e quem? Ela.

Ainda que eu falasse das incômodas sensações que vivi naqueles instantes, nada descreveria meu quase sofrimento. LFT entraria no prédio em poucos segundos, e eu não sabia se me dirigia a ela ou não, afinal, falaria o quê? Oi, Lygia. Ela retribuiria com um sorriso, educada que só ela, os olhos ligeiramente apertados na tentativa da lembrança, Nós nos conhecemos? Mas como não haveria lembrança, e nada mais vindo de minha parte, ela seguiria seu caminho. Eu teria de ser rápida e engatar alguma conversa, teria de ser algo inteligente, algo que a fizesse parar e ter vontade de conversar.

Mas LFT já estava a dois metros, o quê exatamente eu desejaria dizer? Tanta coisa e coisa nenhuma, essa era a verdade. Diria que era sua fã? Coisa mais boba. Perguntar o que ela estava fazendo ali? Um atrevimento. Dizer que já havia lido todos seus livros? Ela, elegantemente, agradeceria. E seguiria. E continuaria com seus pensamentos. Pensei em estender a mão, mas ela poderia se assustar. Falaria de Virgínia, então. Lygia, Virgínia é você? Mas falar assim, no meio de nada, sem introdução, não faria sentido algum, mesmo se a resposta fosse sim (e eu sabia que era). Contaria da pena que senti de Kobold, o anão de jardim, a ponto de ficar com os olhos cheios d’água? Mas se ela estivesse atrasada… Ou se simplesmente não estivesse a fim de ser abordada naquele dia, me olhasse feio e apertasse o passo? Tudo acabaria ali.

E LFT a menos de um metro. Não me recordo se cruzamos os olhares em algum momento daquela sua caminhada, para mim interminável, e ao mesmo tempo de uma brevidade cruel. Respirei – acredito que pela primeira vez desde que a vira descer do carro –, e ensaiei dizer isto: Eu também gosto de gatos. Mas era tarde. LFT já estava lá dentro, aguardando o elevador, e eu jamais fiquei sabendo o motivo daquela sua visita.

Bienal do Livro no Ibirapuera, que ano mesmo? Peguei minha Ciranda de Pedra da velha estante e lá fomos, meu melhor amigo e eu. LFT estaria lá. Eu não queria ver nada além dela. Estava ali por um único motivo. A cegueira da paixão. Avistei-a em uma mesa, ela conversava com seu editor. Ambos de cachecol, ah como eu desejei ter ido de cachecol também. Só para fazer mimetismo.

Desta vez, ao contrário do primeiro (des)encontro, era eu quem me aproximava. Eu dominava a situação. Deixei o assunto dos gatos para lá, também não era hora para Virgínia, nem Kobold. Aguardei uma pausa na conversa dos dois, aproximei-me. Eu teria algo a dizer, enfim. Lygia, você pode autografar para mim? Ou: Lygia, este é o seu romance mais lindo. Mas veio dela o olá primeiro, arruinando tudo, e agora? LFT resolvera tudo por mim e sem que eu dissesse nada, perguntou meu nome e num gesto melífluo – e eu sei que ela gosta dessa palavra, melífluo – pegou o livro e o abriu sobre a mesa. Eu disse meu nome. Ela não entendeu. Repeti, já sentindo minha pele mudar a temperatura, a voz querendo embargar, o coração esquisito, minhas velhas e conhecidas sensações. Talvez por conta disso, ela novamente não entendeu. Foi como se todos aqueles livros ao redor desabassem sobre mim, todas as pessoas daquele imenso pavilhão assistindo à constrangedora cena, quase pude ouvir um Oohh coletivo e consternado. Não é um nome tão popular como Maria, mas também não é dos mais incomuns. Dona Angelina e Seu Antonio, naquele outono de 1967, pensavam no nome para a caçula, e escolheram um que combinava com os dos outros dois rebentos. Capricharam tanto que a primeira sílaba ficou igual para os três. Conheci poucas com meu nome, e até hoje soa estranho ouvi-lo chamando outra pessoa.

Foi quando me inclinei sobre seu ombro e repeti meu nome em seu ouvido, como quem conta um segredo. Ela murmurou, Ah… E pôs-se a escrever. Justamente na página onde ainda havia o preço do livro, escrito a lápis, que eu nunca apagara. As livrarias faziam assim antigamente.

Ela devolveu-me o livro com um beijo, que não pude sequer sentir, o rosto em brasa, o pensamento congelado. Não me recordo de mais nada daquela bienal, apenas tratei de seguir meu amigo. Apertei a Ciranda com força contra o peito, o medo que o autógrafo escapasse, as letras fugissem para o chão e desaparecessem no labirinto de livros. Até hoje não sei se por sinceridade ou compaixão, ela deixou-me o seguinte recado:

Para a Silmara, lindo nome!

Lembrança,

Lygia Fagundes Telles

5 comentários em “(Des)Encontros com LFT

  1. Oi Sil, que lindo texto… estou aqui, lendo-os por ordem alfabética curtindo os ultimos momentos do meu barrigão, como você me recomendou. Nossa, senti o seu aperto no peito ao ler o recado da Lygia pra você… lindo! Também tive um momento assim, apesar de ser bem menos culta que você, mas por amar os livros do saudoso Saramago…Fomos dois dias seguidos na feira do livro quando estávamos em Lisboa uma vez, e ele estava lá, dando autógrafos nos dois dias…Passa tudo na cabeça da gente, né? Mas eles, por serem tão especiais resolvem tudo pra deixar aquele momento inesquecível pra gente. “Já não estivestes cá ontem?” perguntou o velhinho pra mim, me deixando roxa e com um sorriso enorme e com assunto pra começar um tiquinho de prosa… beijos!

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  2. Silmara, eu não havia lido este post.
    Algumas coincidências:
    Você se lembra que um dia eu disse que alguns de seus posts (e, também, uns de minha pititinha) eu apreciava tanto quanto aprecio os contos de Lygia?
    Já tive um fotolog (até deixei link dele aqui, agora) com o nome “Melíflua Rosana” – será que, de forma inconsciente, eu peguei o Meliflua dela?
    AMEI o texto… me deu uma certa aflição com sua aflição…

    Meta: um dia lerei todo o seu blog. É que conheço a pouco tempo…
    beijos

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  3. Adoro Lygia Fagundes Telles também, tenho uma ligação em especial com As Meninas. Que bom que pôde conhecê-la, ainda que trêmula e sem grande desenvoltura, rs. Acho que também ficaria um pouco desconcertada perto dela…

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