Das lembrações essenciais

Ilustração: João Grando

Fecho os olhos por cinco segundos: tenho um metro e dez de altura. Visto uma camiseta tamanho 6, estou doida por um picolé e não sei quanto custa a boneca falante que acabo de pedir para minha mãe. Isso mesmo: eu sou criança.

Continuo. Ainda tenho um e dez, mas agora posso existir como se tivesse um e sessenta. Sinto como a primeira, penso como a segunda. E lembro, lembro, lembro.

Este é o exercício das lembrações essenciais, capaz de transportar adultos à infância distante, porém, com os cinco sentidos e a sabedoria (qualquer que tenha acumulado) de hoje. Para que serve? Aprender a se colocar no lugar do outro. Precisamente, no lugar de um filho ou filha que tenha um metro e dez e use camiseta tamanho 6. Um pouco mais, um tanto menos, não faz diferença. O importante é a parte de lembrar.

Suas memórias hão de se agitar e explodir igual pipoca no microondas. Ficarão cristalinas como a água da piscina onde você nadava com seu pai (e os dois pareciam muito maiores do que realmente eram, lembra?). Serão tão vivas quanto as cores da melhor fotografia que você já tirou até hoje.

E então se dará conta que, na idade que seu filho tem agora, você também tinha vergonhas bobas – de perguntar para o moço da videolocadora se tinha A Bela Adormecida – e medos paralisantes, como quando acabava a energia em casa e você não tinha certeza se sua mãe estava por perto, até que ela clareasse o breu da sua angústia, tocando sua mão e dizendo “Estou aqui, vamos buscar uma vela na cozinha?”. Se lembrará da fúria no olhar da sua avó ao ver os antúrios dela, tão caprichadamente plantados em frente à casa, agora colhidos e enfiados no vaso (ideia sua para enfeitar a mesa), quando encarar seu pequeno confessando ter sido o autor dos desenhos à canetinha nas almofadas, porque ele achou que assim elas ficariam mais bonitas.

Vamos lá, você ainda está com um metro e dez de altura. Vai se lembrar, de repente, que também tinha dificuldade para cortar a pizza sozinha, e não entendia o olhar intolerante dos mais velhos face àquele desafio pessoal.

Lembrará do seu pânico, solitário e silencioso, no primeiro dia de aula do primeiro ano, quando você não sabia se professores eram pessoas legais ou não, e se você ia poder comprar lanche na cantina, como faziam os alunos mais velhos (os ‘homens’ e ‘mulheres’ de nove anos).

Lembrará como os braços dos seus pais eram longos e alcançavam qualquer coisa no armário, e você se perguntava quando os seus também seriam assim.

Se conseguir realizar esse exercício, talvez você saiba que tudo o que pode fazer hoje – dormir e tomar banho na hora que quiser, por exemplo – representa o máximo da liberdade para seu filho.

Talvez saiba que o medo de ele perder você é do mesmo tamanho que o seu de perdê-lo, embora ele ainda não saiba disso, e apesar de cada um ter o seu motivo para.

Talvez descubra por que ele não entende como brócolis pode ser mais importante que biscoito recheado ou, para ficar nos exemplos mais simples, que o significado da expressão “fazer sala” não é literal.

Confesso: eu havia me esquecido completamente do exercício. Ontem o retomei. Passei o dia inteiro com um metro e dez de altura. E ainda não voltei ao meu tamanho normal.

14 comentários em “Das lembrações essenciais

  1. Silmara, continua sendo a surpresa boa de sempre e às vezes a coincidência que precisamos pra nos tocarmos de algo. vou mandar pra minha irmã, enquanto tomava banho de manhã pensei nisso, pra logo depois ler vc e vc, como sempre, continuar sendo uma surpresa boa…
    beijos, parabéns, a poesia da casa também ficou linda.
    Cecília-BH.

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  2. Silmara (e, como dizia minha filha quando pequena, para introduzir uma conversa), 3 assuntos:
    1. texto maravilhoso, vou fazer um link com um post do final do ano no ArteAmiga, que chama Faça com os outros. Combina feito Romeu e Julieta.
    2. lancei o projeto Freguesia do Livro, sobre o qual falamos há pouco tempo. Dá uma olhada, teu parecer muito me interessa. http://arteamiga.wordpress.com/2012/03/07/a-freguesia-esta-lancada/
    3…… Como fazia Marina: esqueci.
    BJô

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  3. Uma amiga recomendou teu blog e desde aquele dia ele está sempre aberto no meu net book! Adorei sua escrita! Muito bom de ler seus textos! Parabéns!
    Eu comecei há pouco um blog, mas ainda estou muito aquém da maneira que desejo um dia escrever. Uma hora te envio!
    Bj,
    Bibiana.

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  4. Ô, Sil…confesso que às vezes suas palavras me deixam muda de emoção.
    Poderia ser a continuação do texto anterior, não?
    Acrescentaria ao seu currículo: “sensibilidade e capacidade de não esquecer o que é ser criança”.
    Beijo, querida!

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  5. Será que vc poderia sugerir em uma nova crônica um exercício para àqueles que não se lembram absolutamente de nada de sua infância?
    O máximo que alcançam começa nos 15 anos e olhe lá?
    É. Isso existe. Somos uma gde parte do bolo, por sinal.

    Ps.: o exercício deve ser lindo.
    Ps2: adoro sua escrita. ADORO!
    Si

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  6. Silmara, que texto maravilhoso!
    ‘Confesso que (re)vivi’ , pelas suas lembrações especiais, medos e vergonhas de infância. Touché!
    Acho que essa pode ser a crônica especial do seu primeiro livro, que tal?
    beijos

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  7. Gosto muito dos seus textos, esse é especial. Um vez ouvi que temos todas as idades que já vivemos….é verdade. As ilustrações também são lindas!

    Bjbj

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  8. Oi Sil querida, seus textos são uns mais lindos que os outros. E caiu como uma luva pra mim, que estou passando a semana inteira com minha filha doentinha em casa, que cospe todo remédio que dou pra ela, come só o que quer e não quer mais sair da frente do computador…não me lembro de como era quando eu tinha 81cm, mas posso imaginar como tudo isso parece injusto. Obrigada pelo exercício! beijos

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  9. Juro. Tô arrepiada… e não é de frio. Tá muito calor lá fora, mas foi vc que aqueceu a minha alma.
    Mais uma vez, obrigada (com a minha sinceridade de um metro e dez… ).

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  10. Bom dia,
    Lindo texto que deve ser divulgado para papais e mamães que se irritam facilmente com seus filhos e as vezes o agridem covardemente.
    Como já falei pra vc tenho 3 filhas e 2 netos e não sei escrever tão bonito como você mas sempre procurei me lembrar das coisas que gostava ou não quando criança para entendê-los.
    um beijo com admiração.
    Angela

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