A mulher que não usava bolsa

Tiago Gualberto, óleo sobre cartão/Flickr.com

Existe, e eu vi. Com estes olhos que, um dia, estando tudo nos conformes, serão de outra pessoa. Quem sabe, eles também presenciarão coisas raras, improváveis. Como esta que vou contar: uma mulher que não usa bolsa.

Quando a conheci, perdi de fazer a vistoria no momento de sua chegada – mulheres sempre se vistoriam quando se encontram. Tratei, portanto, de conferir o canto do sofá durante o almoço. Era um desses restaurantes com sofazinhos. Nada que lembrasse uma bolsa repousava ali. Procurei nas cadeiras ao lado, e nada. Nem grande, nem pequena, nem de mão, nem tiracolo, nem mochila, nenhuma espécie jazia pendurada. Logo pensei no pior, mas a conversa era tranquila demais para um pós-assalto. Continuei escaneando o local, na tentativa de detectar o acessório. Em vão. Faltava algo naquela silhueta. Bingo – ficara no carro! Descobri em seguida: nada disso.

Para ela, a mulher sem bolsa, nada faltava. Não havia vácuo, nenhum vazio existencial. Tudo estava em ordem, em paz. O que ela precisava levar consigo estava ali, numa minúscula carteirinha, mais parecida com um porta-níqueis. Cinco por dez centímetros, não mais que isso. Nela, celular, cartão do banco e algum dinheiro. Só. E a mulher sem bolsa, para minha angústia e confusão mental, estava plena.

Inquirida, a mulher sem bolsa falou-me sobre suas razões. Não gostava, não precisava, não se ajeitava com elas. Tinha apenas três. Todas inúteis, condenadas à escuridão do armário. Imaginei as pobrezinhas numa prateleira lá em cima. Empoeiradas e solitárias. A cada vez que as portas se abriam, suas esperanças se renovavam. Saíam para passear os vestidos, as blusas, os sapatos. Menos elas. Eram bolsas deprimidas. Eu ouvia tudo, incrédula. Para a mulher, bolsa é órgão. Como boca, olho, nariz. Matei a charada: além dos cromossomos X e Y, há o cromossomo B. Que deve ser bê de bolsa. Lá pelos dois ou três anos de vida, a genética se manifesta. A menina começa a usar as bolsas da mãe, da madrinha, até que ganha as suas, depois compra as próprias, num processo garantido pela biologia.

Mas a genética da mulher sem bolsa era diferente. Onde teria ido parar seu cromossomo B? A supressão, contudo, aparentemente não lhe deixara sequelas. Ela jura: se vira muito bem assim. Mas, cá entre nós: onde fica o batom? O lenço de papel, no caso de uma emergência? A caneta, o bloquinho de papel para as anotações de última hora? A carteira gorda, recheada de documentos, os originais e as cópias autenticadas, os cartões de débito, crédito, dos programas de fidelidade, do plano de saúde? Pendrive? Os comprovantes de compras, aqueles papeizinhos azuis e amarelos que parecem se reproduzir espontaneamente, formando verdadeiras colônias dentro e fora da carteira? As fotos dos filhos, do namorado, do marido, de Jesus Cristo, onde? O espelhinho, o pente, a agenda, o celular, o remédio para asma, a sombrinha, o analgésico, o perfume, a pinça, o absorvente – que vai passear até nos dias que não são dias, vai que uma amiga precisa. Onde diabos ela põe tudo? Não põe, ora.

Bolsa é o porta-mundo particular. O que vive dentro nela, está sob controle. O que fica de fora, não. Uma mulher prevenida vale por quantas, mesmo? Não importa. A mulher sem bolsa, serenamente, dispensa tudo. Cromossomo a menos dá nisso.

18 comentários em “A mulher que não usava bolsa

  1. Há muitos anos não uso bolsa, apenas celular com um cartão, hoje pago no pix minhas despesas e uso minha CHN digital no celular, me sinto livre pois tudo que preciso está no celular. Uma bolsa não me define como mulher é apenas a sociedade querendo nos dizer o que devemos fazer.

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    1. Evelise, não sei se foi a pandemia, a tecnologia ou a maturidade (ou um pouco de tudo isso), mas o fato é que minhas bolsas têm diminuído com o tempo – em tamanho e conteúdo. Hoje não é raro eu sair só com o celular, também. Como você disse, está tudo ali. Mas eu amo uma bolsa rsrs… Beijos

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  2. Me identiquei…
    Acho que tambem nao tenho o cronossomo B …
    Tirando os momentos da vida em que elas são indispensável, como quando temos filhos pequenos …
    Eu não uso bolsa….
    Tudo se resume a uma capinha de celular com espaço para os cartões…
    E me sinto livre e completa assim…💋

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  3. Pois é, dividi varios anos de faculdade com essa mulher ai, sem bolsa. Ela tem bossa, não bolsa, ora bolas.
    Ps: Para os inquietos, essa mulher tem SEMPRE um pente na cadeira da frente do carro e papeis, muitos papeis em torno!

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  4. Olá Silmara!!
    Fazia tempo que eu não passava por aqui e para minha surpresa dei de cara com esse texto.
    Imagina, uma mulher sem bolsa, idéia estapafurdia essa, não!!! Faço idéia da sua surpresa. Colei no meu blog de bolsas é claro!
    Beijocas pra vc!

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  5. he, he, he!
    Sabe que eu acho que bolsa é um apêndice feminino?
    Mas, uma questão que sempre me intrigou: como os homens conseguem viver sem elas? ( Abarrotando os bolsos de coisas…)

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  6. Ver a mulher sem bolsa ficar sem palavras foi o mais emocionante na crônica de hoje.

    E já que mochila vale, meus cromossomos estão em ordem. Ufa!

    Que energia boa a do seu blog, Sil. É a coisa virtual mais humanizada que eu conheço.

    Um beijo,
    Camila
    ilimitada-mente.blogspot.com

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  7. Oi Siilmara!

    Continuo sem bolsa e agora to sem palavras…
    Sua sensibilidade é algo que me emociona demais…
    Que bom que você é real!
    Fiquei muito feliz com nosso encontro.

    A muher sem bolsa

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  8. Sil…aqui em Porto Alegre, conheço uma mulher também que não usa bolsa, e quando saí uma turma, ela tasca do bolso de trás da calça e tira uma minuscula carteira e paga sua parte da despesa…também não sei como ela vive sem uma, mas consegue viver, sem celular, sem internet, e está sempre com os olhos e boca pintados…então consegue viver sim, eu já carrego meio mundo na minha…rrssr feliz delas que não tem esse hábito….abraços

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  9. Sil, querida, você me fez refletir sobre a razão pela qual nós homens não usamos bolsas… Vou pensar mais sobre isso e nos falamos depois…..:)
    Beijos mil e um dia cheio de amor para todos nós.

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  10. Oi Sil.
    Sabe, durante muito tempo eu não liguei muito pra bolsas. Usava uma do tipo universitário, na época da faculdade (que hoje em dia não se usa mais) e quando não era o caso de usá-la, levava apenas um livro. Dentro dele, além da história, colocava o dinheiro, e a identidade. E só. Não carregava batom, o lenço de papel, num bolso (único acessório indispençável, por causa da renite, que não escolhe hora pra incomodar) e o absorvente, se era dias, dava um jeitinho de guardá-lo em algum lugar. Sempre fui muito desajeitada com as bolsas. Quando precisei usar escolhi uma de alças compridas que pudesse pendurar cruzada sobre o ombro ou pedurada no pescoço da forma mais errada, impossível. Devo ter adquirido o cromossomo B, ou o desenvolvi com a idade, da mesma forma que se adquire uma LER, sei lá. Mas não é tão ruim assim, apenas um QUERER a mais. Vejo as bolsas na vitrine, as admiro, sempre acho caras demais e não compro, fico imagnando quanta coisa cabem nelas, quanta tralha pra carregar e logo percebo que muitas vezes as alças não suportam o peso e acabem arrebentando (ou quase)… Com a idade, vamos aculmulando coisas pra carregar. Respnsabilidades, documentos das crianças, carteira de motorista, creme para as mão (que invariavelmete fica escondido num bolsinho qualquer da bolsa) bilhetinhos e desenhos dos filhos, cartão de visita, o batom que numca uso, (pois não carrego espelhinho) o pen drive, o celular e algumas vezes o carregador, (nunca o manual, apesar de não entender direito pra que tanta função, também nunca uso todas) deve ser um agravamento dessa LER adquirida com o cromossomo B ir acumulando coisas dentro da bolsa.
    Um beijinho Sil, e parabéns pelo texto, mais uma vez!

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