A meia

Foto: Khawkins/Flickr.com

Tem coisas que marcam a gente, se não para sempre, por muito tempo. Uma fotografia, um livro, uma canção. E outras, que não vêm traduzidas sob forma alguma. São as experiências. As que a gente vive quando cresce e vai trabalhar, por exemplo. Coisas como pagar a conta do restaurante com o próprio salário, desafiar a hierarquia, cumprir uma meta insana, dominar a preguiça. No meu caso, um dos grandes marcos foi algo simples, mas não menos emblemático. A verdade é que nunca mais fui a mesma depois que flagrei um diretor com a meia furada.

Naquele dia, durante a reunião onde eu deveria prestar atenção a uma pauta insossa, meu olhar se ausentou, como sempre fazia, e foi passear. Para ver se encontrava algo interessante. E encontrou. Sob a mesa. Aquele homem simpático, porém inatingível, hermético e sério em tempo integral, tinha um insuspeitável rombo na meia. Revelado assim, por acaso. Tempos depois, considerei aquela uma das minhas principais iniciações corporativas, espécie de revelação. Nem minha primeira demissão causara tanto rebuliço em mim.

Meias furadas nunca foram objeto de estudo nos ambientes empresariais. Não há literatura a respeito no mundo dos negócios. Jamais se abordou o tema em uma dinâmica. Porém, existe algo de revelador em um superior de meias esburacadas. Meia de chefe – sempre acreditei – deveria ser neutra, clássica, impecável e imaculada. Invisível. Mas ali, diante de mim, estava o contraponto. Quem era aquele homem, então?

Lembro direitinho: era um furo iniciante, que nascia no calcanhar e se estendia, discretamente, em direção ao tornozelo. Meia antiga, só poderia ser. Meia nova não fura por qualquer coisa. Constatações à parte, eu estava diante da segunda revelação: chefes também usam meias velhas.

Fiquei com a mente desconcertada. As ideias descosturadas. Como era possível alguém tocar um negócio daquele porte, conduzir uma orquestra com tantas pessoas, liderar e decidir, com uma meia avariada? A cena nunca mais se repetiu, mas aquele furo deixara um enorme buraco nas minhas convicções, com o raiar da terceira revelação: a meia não faz o chefe.

8 comentários em “A meia

  1. Engraçado ashsahuas.
    Como disse,não é oque vestimos que nos faz.As vezes sim,porém…
    Grandes chefes também usam meias rasgadas sahusahusa.(também não,eu não uso )

    […]As ideias descosturadas.

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  2. Num primeiro momento, fiquei feliz por saber que se um chefe usa meias furadas, também posso fazer isso. Mas me lembrei que não gosto de meias furadas. Elas dizem alguma coisa de mim que não é verdade…

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  3. Fico admirada como você consegue “filosofar” a partir de fatos tão corriqueiros!
    Pensarei na sua conclusão, ao me deparar com as meias( várias) furadas do marido…

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  4. Cara Silmara

    Olá! Meu nome é Claudia. Lancei há poucos dias um blog chamado O Fio e a Meada. Após a divulgação, alguns amigos me alertaram que havia outro blog com o título quase igual (o seu). Verdade que os temas são bem diferentes, mesmo assim, pode acontecer de termos “visitantes” perdidos, procurando pelo blog errado. De forma que, sempre que alguém perguntar pelas crônicas de Silmara, vou encaminhar o leitor para cá. Se for possível, por favor, também encaminhe os meus “perdidos” para ofioeameada.blogspot.com.

    Desde já obrigada e parabéns. Gostei do seu estilo.

    Abraços cordiais

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  5. A meia não faz o chefe, nem ninguém!
    Pena que tem pessoas que custam a entender isso.

    Pelo menos a Silmara não é uma delas 🙂

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