Pela metade II

Foto: Filipe Oliveira/Flickr.com

É preciso prestar nova atenção ao que, na vida, ficou por fazer. Agora, junto às obras inacabadas espalhadas pela minha cidade, há mais uma imagem desconstruída, desta vez noutro lugar. Uma coisa é o edifício não-terminado sem ninguém dentro. Outra coisa é o que, não finalizado, tem gente dentro.

O primeiro só cutuca. Faz lembrar das obras e dos projetos de vida que ficaram pelo caminho, rascunhados e embargados lá dentro da cabeça. Já o segundo põe os olhos fazendo de conta que não estão vendo nada. Os mesmos olhos da mesma cabeça das ideias inconclusas.

No edifício por terminar com ferros retorcidos e aparentes, das paredes mal erguidas, de janelas eternamente abertas na veneziana de papelão e dos chãos crus, meu Deus, mora gente. Muita gente. Gente de vida pela metade, igualmente inacabada como os planos da cabeça.

Da rua se vê um varal estendido na não-varanda do segundo andar. Duas camisetas, três pares de meias, duas calças jeans, três sutiãs velhos, meia dúzia de calcinhas e roupas de criança. São as únicas cores do não-prédio. Os únicos sinais de vida na obra morta de dez andares. Cada peça de roupa estendida representa um direito subtraído do cidadão incompleto, numa exposição indesejada e quase maldita em plena metrópole dita desenvolvida e das boas oportunidades.

A nova atenção, prestada a contragosto, tira, por instantes, a graça do meu período sabático na capital mineira. À noite, entre um pensamento e outro, confiro o varal onde pendurei, uma a uma, as ideias do dia. E me dou conta: muitas ainda não secaram. Nem vão secar.

8 comentários em “Pela metade II

  1. Oi, Silmara!
    Tudo bom, depois das férias?
    Uma ideia está pendurada no meu varal, ainda sem secar: terminar algumas coisas que comecei faz tempo e, desde o seu outro texto, não me sai da cabeça concluí-las.

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  2. Sil
    Entre tantos tristes trapos de gente e de idéias, de sonhos e de prédios, vemos também a vida. Simples e tão humilde, parca e humilhada essa gente que não mora, se esconde, se abriga e até parece que brinca de casinha, brinca de sobreviver e briga a cada dia com o desfecho fatal sempre iminente. Nem sei o que me entristece mais na cena. Se o prédio inacabado, enfeiando a nossa cidade, ou se o simples fato de ele não existir, deixaria essas pessoas sem um “lar”… se é que pode ser assim chamado, um teto sem janelas, uma parede sem aconchego.

    um beijinho
    Josi

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  3. É triste visualizar essa cena, e principalmente perceber que um dos que se acostumou com essa situação é você mesmo(a)… Dói né??? Não nos perdoamos…
    Mas ao mesmo tempo fico impressionada com a obra mais perfeita de Deus…
    O homem… Que consegue dar vida e cor a prédios não acabados…
    É o dedo de Deus demonstrando que ainda é possível… ainda somos capazes!!!

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  4. Silmara, você nem imagina o que encontramos aqui no Rio. Tem de tudo isso. Prédios inacabados sem ninguém, prédios inacabados invadidos onde as pessoas sobrevivem e prédios que um dia foram acabados, mas só Deus sabe como e que se encontram hoje em petição de miséria, pois as pessoas não têm condição nem de se manter quanto mais fazer manutenção num prédio.
    É muito triste ver tudo isso e muito mais, porém acho que temos, que é importante para nossa vida ter contato com essa parte triste da vida para que não nos esqueçamos de certas coisas em nós.

    bejus e ótimo final de semana!

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  5. Oi, pequena!
    Na minha cidade (Patos de Minas), também há um prédio que foi abandonado.
    Ele agora fica apenas por lá, aguentando a ação do tempo.
    Algumas pessoas o utilizam para fazer tráfico e diversos jovens aproveitam seus corredores e telhados para fazer Le Parkour.

    É estranho ver que aquilo está pela metade e mesmo tanto tempo depois, ainda permanece da mesma forma.

    Mil beijos. Fico feliz pelo seu retorno!
    Abração.

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  6. Sil,
    aqui em Bh, tem um prédio assim, enorme e inacabado onde moram muitas pessoas, no Bairro Santa Tereza. A construtora não deu conta de acabar a obra, o prédio foi invadido por pessoas pobres e aquelas que suaram para pagar o tão sonhado apartamento ficaram a ver navios. O poder público não consegue tirar aquelas pessoas de lá. o tráfico de drogas rola solto. Não existe agua encanada e a luz é um perigo danado: um monte de gatos em tempo de causar um desastre.
    Enfim, um caos social.
    Da av. do Contorno ou dos Andradas, milhares de pessoas passam perto todos os dias. Veem, mas fingem que não estão vendo. Eu mesma, que estou sempre passando por ali não gosto de olhar. Pq se olho muito, fico triste. Pelos que estão lá e pelos que não estão em algo que é seu.
    Beijos

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    1. Ana Paula querida, então acho que é o próprio. Eu o vi na volta de Santa Tereza, quando fui conferir de perto as coisas do Clube da Esquina. Pena. Uma felicidade imensa no começo do passeio, uma tristeza danada no fim. C’est la vie. Beijos…

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